quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Sugestões para o Dia das Bruxas

Com tantas cegadas pagãs que nós temos, lá tivemos de importar o Dia das Bruxas, como é festejado de acordo com o modelo norte-americano... Este ano vou-me mascarar de quê? Enquanto não me lembro de nada que valha a pena fazer-me sair do sofá, deixo-vos com duas sugestões de meter medo ao susto.

A primeira é a exposição Endoscopia do Medo, que é inaugurada daqui a umas horas (19H00) na Galeria Articula, em Alfama. Trata-se de uma mostra de peças de joalharia, inspiradas no tema do Horror, produzidas no âmbito de um concurso de ourivesaria organizado pelo Cineclube de Terror de Lisboa durante o pretérito MOTELx 08. As jóias foram criadas por finalistas da Escola Secundária de Ensino Artístico António Arroio.

Nenhuma profissão actual evoca sentimentos de angústia e desespero tão fortes quanto a de professor e, à chegada do Dia das Bruxas, período em que essas emoções adquirem maior cunho libertário, recomendo uma ida ao cinema para verem A Turma, o novo filme de Laurent Cantet (Recursos Humanos, O Emprego do Tempo).
Consiste num misto de documentário e ficção, cujo enredo se desenvolve em órbita de uma turma vulgar numa comum escola secundária de um bairro problemático de Paris. Baseado no livro Entre Les Murs de François Bégaudeau (cuja edição em português será assegurada pela Dom Quixote), o filme continua a progressão do cinema de Cantet, todo ele centrado no drama entre o indivíduo e a instituição, e foi premiado com a Palma de Ouro na passada edição do Festival de Cinema de Cannes.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Witchfinder

O cientista Richard Dawkins, académico cujo trabalho muito aprecio (e que se encontra disponível em diversos títulos de divulgação científica e, finalmente, em DVD), parece ter encontrado uma plataforma de entendimento com os criacionistas: é que, aparentemente, ambos acreditam que os livros de Harry Potter podem exercer uma má influência nas crianças.

Fico surpreendido ao ler que Dawkins, criador do (correctíssimo) conceito da Meme (no final do livro The Selfish Gene), parece, aos sessenta e sete anos de idade, não compreender que está a ser, ele próprio, influenciado pela meme do racionalismo radical.

As ciências apresentam-nos as únicas ferramentas válidas para entender o mundo, mas nós somos animais imaginativos e o alimento da imaginação é a fantasia.
Enquanto ateu (não acredito na alma, na vida após a morte, em sincronicidades, na homeopatia e no poder laxante dos cristais) não encontro nenhuma fricção em, ao mesmo tempo, validar o conhecimento científico e alimentar a imaginação com o fantástico; não fosse escritor de ficção fantástica, os meus hábitos de leitura continuariam a ser os mesmos. Penso que um dos problemas das religiões é mesmo esse: querer fazer-nos acreditar que os mitos servem para explicar o mundo.
O Mito e a Fantasia são linguagens que falam com a Imaginação: com o nosso pensamento onírico e contemplativo. Precisamos delas para nos fazer sonhar, assim como precisamos da Ciência para nos mostrar como o mundo funciona.

Dirijo o meu discurso à necessidade de transcendência que nós temos.
Essa necessidade é, em última análise, um produto da biologia (não poderia ser outra coisa...) e não deve ser ignorada. Na minha opinião, esse dimanar da Razão é, com mais eficácia, alcançado pela Arte, pela Fantasia, que pela Ciência. É um sentimento que se prende com um certo atavismo, talvez, desde os tempos em que começámos a imaginar deuses por todo o lado. Penso que essa noção quase metafísica não passa, de todo, pela busca pelo conhecimento, mas pela eterna tentativa de transgredir os limites da carne. E como não passa pelo conhecimento, per se, não vejo nenhuma contradição em que ela coexista com a ciência. Não competem.

Somos criaturas que vivem em duas dimensões: uma objectiva e uma subjectiva. Precisamos de linguagens que comuniquem com as duas. Precisamos de ciência e de fantasia, portanto. Se não formos capazes de as integrar, cada qual na sua especificidade, correremos sempre o risco de nos deixar levar pelo disparate e fazer figuras deste género:

Carne rebelde

Uma curta-metragem de animação intitulada Meat Love, realizada por Jan Svankmajer.


terça-feira, 28 de outubro de 2008

Histórias com letras

O vencedor da primeira edição do prémio literário Leya é o jornalista brasileiro Murilo António Carvalho e o manuscrito premiado intitula-se O Rastro do Jaguar.



No seu novo livro, o provocante Russel A. Berman reflecte sobre o papel da literatura de ficção no desenvolvimento da sociedade ocidental. O trabalho tem como título Fiction Sets You Free: Literature, Liberty and Western Culture.

A historiadora Irene Flunser Pimentel editou um novo livro, Biografia de um inspector da PIDE: Fernando Gouveia e o Partido Comunista Português, pela Esfera dos Livros. Para quem está familiarizado com as personagens do regime salazarista, o nome de Fernando de Araújo Gouveia não é inédito, até porque o próprio, em 1979, editou uma espécie de auto-biografia, anti-comunista, sob o título Memórias de Um Inspector da Pide. A Organização Clandestina do PCP (Roger Delraux). Recomendo a leitura dos dois, assim como a do livro A Hisória da Pide (Temas & Debates, 2007), também da autoria de Pimentel.

The thing that should be

A Cinemateca de Lisboa está a exibir um ciclo dedicado às longas-metragens de John Carpenter, mestre do horror. Vejam no programa os dias e as horas em que são mostrados os vossos clássicos predilectos e não faltem.

Pela imagem, já devem ter adivinhado qual é o meu.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O dia da rádio

O que é que poderá apresentar, no mesmo intervalo de tempo, a lamechice doom-pop dos Depeche Mode, a chinfrinada ultra-técnica dos Suffocation, os berros de quatro oitavas da Diamanda Galás, a algaraviada decadente dos Mão Morta e o satanismo de pacotilha do filme The Exorcist de William Friedkin? Acertaram! É a próxima emissão do programa virtual de rádio Invisual, de Marcos Farrajota, cujo convidado serei eu.
A emissão, transmitida online pela Rádio Zero, tem início às 20H00 da próxima quarta-feira e repete-se no sàbado seguinte às 13H00.
Se sentirem o tempo a pesar-vos nas mãos, ouçam.

domingo, 26 de outubro de 2008

Uma leitura

Na passada sexta-feira, no decurso da mesa redonda promovida pela Bedeteca de Lisboa, falei sobre a minha experiência enquanto autor de banda desenhada e da forma como me relaciono com a crítica especializada que observa os meus trabalhos. Como expus à assistência, a minha carreira de autor possui duas faces: a de autor de BD e a de escritor; e foi nesse contexto que esclareci que entendo a crítica como uma espécie de meta-leitura da obra. Diante da impossibilidade de conhecer a opinião individual de cada leitor, a análise crítica pode oferecer pistas para se perceber como o trabalho é recebido. Ou seja, o agente crítico acaba por representar, nesse instante reflexivo, o pensamento da massa anónima que se compõe pelo conjunto de potenciais leitores.

Em seguida, e para responder a uma pergunta sobre o problema da falta de hábitos de leitura de banda desenhada manifestada pelas novíssimas gerações, descrevi uma ideia com a qual já andava a brincar há algum tempo: ela correlaciona-se com a questão da iliteracia (aparentemente, lê-se cada vez menos, apesar de se venderem mais livros), mas apenas à superfície, porque acredito que o livro e o álbum de BD acabam, na verdade, por ser objectos estranhos e pouco apelativos para as crianças, sobretudo se não forem habituadas a contactar com eles desde a infância. Adicionando isso a um naturalíssimo bias pelo estímulo visual, pela imagem, é também natural que a leitura de banda desenhada pelos jovens tenha sido regular durante a década de oitenta do século passado, mas que se tenha deteriorado nos períodos seguintes. Dá-me a impressão que a BD se vendia mais nessa altura porque, com efeito, consistia no único produto de merchandising disponível para comércio que possibilitava aos miúdos o contacto com as personagens que viam nos desenhos animados.

A influência que a televisão opera sobre o espectador é muito grande e tudo aquilo que é anunciado por esse meio de comunicação adquire uma auréola de importância enorme; um único anúncio televisivo é muitíssimo mais eficaz que um spot de rádio repetido a cada hora ou uma publicidade de meia-página publicada num jornal durante um mês. Prosseguindo por este caminho, basta um breve exercício de memória para perceber que todas as séries de animação transmitidas na televisão durante essa década, desde aquelas que apresentavam as personagens de Walt Disney às criadas pelos estúdios Warner Bros e Hanna-Barbera, passando por adaptações de histórias franco-belgas do Tintin e dos Estrumpfes até aos heróis da Marvel, possuíam um reflexo impresso em papel sob a forma de revistas e álbuns de banda desenhada. Em suma: num esforço para prolongar a vida útil da personagem televisionada, a compra dos álbuns e revistas era, em última analise, o único desfecho possível; uma procura esporeada pelo televisionamento. É claro que o hábito da leitura, mesmo que a leitura per se, não seja o móbil (o objectivo pode ser, somente, prolongar a vida útil da personagem televisionada), acaba por criar efeitos secundários: o gosto pelos livros, a valorização do conhecimento e o alcance que a cultura é útil na vida diária. Mesmo assim, todas essas qualidades, por mais nobres que sejam, são, de igual modo, colaterais a uma actuação que não as ambicionou.

Mais ou menos no início da década de noventa, quando o merchandising em órbita das personagens animadas começou a ser feito com action-figures, perfeitamente miméticas, e com jogos virtuais, que reproduzem com grande verosimilhança a aparência da animação televisiva, o livro perdeu peso porque se trata de um objecto informe, no que diz respeito à aproximação que faz às personagens animadas: é fraco enquanto simulacro da personagem preferida e perde para com a action-figure e o jogo enquanto objecto de afecto, simplesmente porque estes são mais rápidos a criar emoções fortes. Perde, até injustamente, por culpa da biologia: jogar computador com regularidade liberta uma quantidade excessiva do neurotransmissor dopamina no nucleus accumbens do cérebro; a hiper-estimulação do córtex pré-frontal que ocorre em consequência disso irá traduzir-se, a médio prazo, em efeitos análogos aos manifestados por indivíduos viciados em heroína. A tolerância anormal à dopamina, e a necessidade de doses cada vez mais elevadas para que o córtex pré-frontal seja excitado, cria sintomas como a desatenção, a perda de memória e, mais importante, a incapacidade de relacionar um item com outro – ou seja, perde-se a capacidade de viver no tempo inteiro (planear o futuro) para se viver somente no presente. Todas as actividades que não se cifrem num estímulo imediato (algo que ofereça uma recompensa rápida) são, liminarmente, rejeitadas. Actividades como a leitura, portanto.

No seguimento deste raciocínio, concluí a minha participação na mesa redonda com o argumento que a banda desenhada é, provavelmente, uma arte em vias de extinção: pois se os jovens não a lêem (não lêem BD nem coisa nenhuma, na pior das hipóteses) como é que podemos estar à espera que alguns deles venham a querer ser autores de BD? Ou até a possuir a habilidade necessária para o efeito, já que a leitura é fundamental à cristalização de uma voz autoral forte? Acredito que a ilustração e o cartoon, tantas vezes confundidos com a banda desenhada, irão estar connosco por mais tempo: em primeiro lugar, têm a vantagem de ser artes visuais, e as novas gerações são as da imagem (a BD é, sobretudo, uma linguagem narrativa); em segundo lugar, são áreas que absorvem de modo célere e hábil as aplicações técnicas que as ferramentas digitais possibilitam, e este fascínio tecnófilo é bastante importante porque a tecnologia irá transformar os mundos da arte, do entretenimento e do trabalho. A fronteira entre aquilo que é trabalho e aquilo que é lazer encontra-se cada vez mais diluída e as noções de sacrifício e de dever são alienígenas para quem, hoje, tem menos de vinte anos. Nessa óptica não é falacioso projectar que a escola irá mudar bastante, porque se trata uma instituição que acompanhou sempre as sismografias da esfera laboral.

É (muito) fácil olhar para a escola com alguma poesia, mas convém lembrar que a sua função de origem é, apenas, formar peças para a engrenagem social: sejam elas médicos, advogados, técnicos de contabilidade ou, simplesmente, outros professores. A escola não tem, à priori, o intuito de transmitir conhecimento de um modo desinteressado ou até altruístico: a escola modela trabalhadores para o futuro – ou assim esperamos. O facto de um aluno poder desenvolver uma carreira intelectual, individual, e, graças a essa valorização, tornar-se alguém que se destaque da média é uma contingência da escola lhe ter oferecido um meio conveniente ao estudo, à experiência e ao refinamento do conhecimento; contudo, isso não deixa de ser transversal. O objectivo principal da escola, desde que esse conceito foi criado, é formar os acessórios que a sociedade precisa para se sustentar. Lembrem-se que as massas só começaram a aprender a ler quando se tornou necessário decifrar as instruções das máquinas inventadas após a Revolução Industrial.

"Quem é que sabe dizer de cor quais são todos os rios de Moçambique?"
"Eu, eu, Senhor Professor! São o Búzi, o Pungué, o Limpopo, o..."
Na escola do Estado Novo, por exemplo, a transmissão de conhecimento estava subordinada à agenda política do regime.

Se o mercado de trabalho se tornar, definitivamente, diferente daquilo que é hoje (o que irá acontecer, de certeza absoluta), o modelo de escola plasmado pelo cânone do século XX vai desaparecer. De facto, manter uma escola física exige um orçamento anual tão elevado que várias instituições encontram-se já a desenvolver feições de implementar, de uma maneira perdurável, a escola virtual (o b-learning e o e-learning) na qual cada aluno estudará em casa, através do computador, as disciplinas que irão ao encontro dos seus interesses; ou, in the long run, às exigências de um mercado de trabalho virtual. O trabalho do futuro será virtual, especializado e suportado pela prática de outsourcing: será um sistema feito de pequenos pólos complementares, altamente especializados, invés de grandes complexos empresariais, como os que ainda hoje subsistem. Não é fácil pensar sobre qual será o futuro do livro num ambiente dessa natureza, mas tenho uma ideia.

Assumindo que continuará a ser possível fabricar papel (ou uma imitação eficaz), acho que o livro poderá sobreviver enquanto veículo de contra-cultura, impresso de modo artesanal em pequenas e anacrónicas tipografias, mas nunca como produto de entretenimento e de transmissão de conhecimento porque esses, e o modo como os entendemos agora, não serão os mesmos. Nada disto é novo: pensem na quantidade de ofícios, artes e métodos de transmitir conhecimento que se perderam ao longo da história; de certeza que houve, durante anos a fio, incas saudosistas da linguagem quipu que foi descartada em favor da introdução da escrita na região andina pelos conquistadores espanhóis. É uma pena que os hábitos de leitura venham a desaparecer, mas isso é, até ao momento, um caminho inevitável.
Um futuro sem leitores, mas, também, sem livros para ler poderá ser, em verdade, um futuro equilibrado.

sábado, 25 de outubro de 2008

Não se ouve nem uma mosca

Com música de Howard Shore (The Lord of the Rings, The Silence of the Lambs) e libretto de David Henry Hwang (M. Butterfly), a ópera The Fly, que segue de perto o remake que David Cronenberg realizou (1986) a partir do filme homónimo de Kurt Neumann (1958), é uma peça com duas horas de duração que transfere, novamente, o período em que o enredo se desenrola para a década de 50 do século passado; tal como se pode ler no conto escrito por George Langelaan, que serviu de base para as versões cinematográficas. A direcção do projecto, que foi exibido a 2 de Julho no Théâtre du Châtelet de Paris e a 7 de Setembro na Opera de Los Angeles, esteve a cargo do próprio David Cronenberg, que contou com Plácido Domingo como maestro.

O barítono Daniel Okulitch e a soprano Roxana Dunose interpretaram no palco os papéis que já tinham sido desempenhados por Jeff Goldblum e Geena Davis.
Pode ser que passe pelo São Carlos...


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O preservativo do Estado Novo


A mesa redonda subordinada às relações entre os autores e os críticos de banda desenhada, mais as possíveis tendências às quais a nona arte se poderá moldar daqui as uns tempos, e que decorreu hoje à tarde da Bedeteca de Lisboa, correu bastante bem; as intervenções dos oradores, incluindo eu, pautaram-se pela energia e acutilância. Agradeço à Bedeteca (Rosa Barreto, Marcos Farrajota, Adalberto Barrreto) o convite que me endereçou para participar.

Depois da exposição de ideias, eu e os meus colegas de debate tivemos o privilégio de usufruir de uma visita guiada à exposição Os Ridículos: Desenho Humorístico e censura (1933-1945): iniciativa conjunta entre a própria Bedeteca e a Hemeroteca Municipal de Lisboa, que estará presente no Palácio do Contador-Mor, até 31 de Dezembro.

A exposição conta com dezenas de originais pertencentes ao espólio constituido pelos exemplares do bissemanário satírico Os Ridículos, periódico dirigido por José Maria da Cruz Moreira, o "Caracoles", e que começou a ser publicado em 1895. Stuart de Carvalhais, Natalino Malquiades, Santos Silva, Colaço ou Xavier Magalhães são apenas alguns dos ilustradores cujos trabalhos, censurados pelos infames lápis-azuis dos censores do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro (1933), mais tarde Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura Popular (1944), podemos agora admirar sem qualquer repreendimento ou risco.

É preciso lembrar, ou mesmo ensinar, aos mais distraídos que, já em 1932, Salazar declarou que a revolução legal estava realizada, mas que faltava concluir a revolução mental. Para o efeito, criou o conceito de política do espírito: espírito esse que orientou a propaganda do regime que ficou a cargo de Ferro e Álvaro Salvação Barreto.
Os objectivos censórios de qualquer sistema político totalitário são sempre veicular a receita desse mesmo regime, apelar à apatia dos cidadãos mediante um retrato anódino do quotidiano e fazer-lhes acreditar numa visão monoteísta do mundo, da qual o líder aparece como grande farol. Se é verdade que os gabinetes de Ferro e Barreto eram independentes (o SNP e a Censura), ambos faziam parte do mesmo tronco e lucraram mais ainda com a sua fusão, em 1944, quando o SNI sucedeu ao anterior organismo. O escritor espanhol Eugénio D'Ors escreveu no prefácio do livro Salazar: O Homem e a Sua Obra, de António Ferro (Edições Fernando Pereira. Aveiro, 1982) que o aparelho da Censura foi «o preservativo do Velho Regime».
Ora, como preservativo entenda-se aqui não só o significado de agente preventivo, mas também de composto conservador de um estado ideal de higiene. Não foi à toa que Salazar disse que «se o jornal é o alimento espiritual do povo, deve ser fiscalizado como todos os alimentos».

A exposição que devem visitar na Bedeteca de Lisboa até ao final do ano é uma amostra significativa, e lúcida, daquilo que foi o ministrium dos censores do Estado Novo.
É comissariada por Álvaro Costa de Matos (Hemeroteca Municipal de Lisboa) e Pedro Bebiano Braga (Museu Rafael Bordalo Pinheiro): fica o agradecimento pelo tempo que concederam à visita guiada que nos realizaram.

From cat to (cash) cow

«Que influência pode um animal ter?» Esta é a pergunta para a qual o livro Dewey, o Gato Que Comoveu o Mundo tem a resposta.
Não conhecia Dewey e a sua história. A primeira vez que vi este gato, de olhar melífluo, foi num dos posters de divulgação da edição portuguesa do livro escrito por Vicki Myron, publicado pela Editora Leya, que se encontram espalhados pelo centro de Lisboa. Não tenho vergonha nenhuma em admitir que fiquei logo com vontade de agarrar no gato e andar com ele ao colo – sempre existem bons técnicos de marketing… Com esse aviso em mente, achei que seria melhor saber mais coisas sobre a criatura, antes de me dispor a ficar cheio de pulgas, e desvendar o significado do título da biografia dela.
Afinal de contas, o que é que Dewey poderia ter feito para comover o mundo?
Teria doado medula óssea a um dono em necessidade?
Descobri que se tratou de um gato abandonado na caixa de devolução de livros de uma biblioteca pública na cidade norte-americana de Spencer, no estado do Iowa; adoptado pela bibliotecária que o encontrou, a já citada Vicki Myron, o tareco tornou-se no tóteme da comunidade (qual anjo benfazejo, à la Michael Landon na mítica série Highway to Heaven), insuflando de amor os corações dos indivíduos que comungavam com ele: incluindo dois sem-abrigo que se deslocavam diariamente à biblioteca para conversar com ele durante vinte minutos. Também operou o “Milagre da Literacia” (© Dewey) porque, de acordo com as fontes que consultei sobre a vida de Dewey (como esta notícia, de onde extirpei a informação sobre os tais dois sem-abrigo), os números de utentes da biblioteca em Spencer passaram de uns famélicos sessenta mil para cem mil: o que é mais extraordinário é que isso ocorreu num período de crise económica – que, como podemos decalcar de exemplos do passado, são temporadas hostis à divulgação da cultura.
Ontem compreendi a sincronicidade que consistiu na minha descoberta da história de Dewey.
À tarde, desloquei-me à biblioteca pública Orlando Ribeiro, em Telheiras, para assistir a uma mesa redonda sobre questões relacionadas com a edição de banda desenhada em Portugal e o modo como as bibliotecas podem ser instituições úteis na sua promoção; a conversa entre diversas pessoalidades do círculo bedéfilo português, interessante que foi, terminou sem se ter chegado a conclusões consensuais. Ainda deve ser precisa mais maturação de raciocínio para perceber qual o modo mais elegante de mostrar aos potenciais leitores as vantagens que a prática da leitura – mesmo de BD, acreditem – lhes poderão facultar, não é? Hum... Talvez não.
Na realidade, não é preciso argumentar com os leitores em potência sobre os poderes libertários do conhecimento adquirido pela leitura. Era só o que faltava!...
Nem sequer dar-lhes a entender que ler pode ser divertido. O quê? Até o Diabo se ria.
Basta que cada biblioteca de Lisboa adopte um gato parecido com Dewey: a acreditar no exemplo da cidade de Spencer, o número de leitores aumentará num ápice. (Não se esqueçam que, tal como os habitantes do Iowa, também atravessamos um período de crise económica: tempo em que se costuma, enfim, caçar com gato.)

Dewey puxa do cachimbo e relata as memórias à dona adoptiva e futura biógrafa:
«Cabrita, hoje vou-te falar de...»

Não me interpretem mal: eu sou uma cat person. Adoro gatos e confesso que a foto de Dewey me deu vontade de ir procurar o livro. Mas… Milhões de livros vendidos no mundo inteiro sobre um gato vadio que, sabe-se lá como, caiu no goto de uma cidade inteira? Equipas de jornalistas que viajaram milhares de quilómetros, desde a Europa e o Japão, para ouvir essa história in loco? Perdemos o juízo? De vez?



Ia concluir este artigo com a argumentação que 1) este episódio é mais uma manifestação da crescente infantilização da sociedade ocidental, 2) que é uma demonstração cabal do modo como a nossa pieguice pode ser manipulada para se vender seja o que for, 3) que existem milhões de gatos iguais ao Dewey, e outros muito mais giros, a procurar alimento nos caixotes do lixo de todas as cidades, mas acho que não vale a pena.

Vá… Vão lá comprar o livro do Dewey, pronto.
Pelo menos, leiam-no.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mau génio






Kingpin Books: Novidades


A editora independente Kingpin Books vai apresentar duas novidades no próximo Festival Internacional da Amadora: as versões coloridas e redesenhadas dos comics Super Pig e C.A.O.S.

Escrita por Mário Freitas e desenhada por Carlos Pedro e Gevan, a série Super Pig já conta com quatro edições de puro delírio visual e narrativo. O universo da personagem Super Pig encerra o melhor de dois mundos: a linguagem gráfica e o saber-fazer que se podem ler nos melhores comics americanos e uma narrativa pormenorizada, à europeia, que desenvolve o carácter das personagens de modo surpreendente. Uma banda desenhada que, desavergonhadamente, pertence a 2008: moderna, saucy e inteligente.

A série de banda desenhada policial C.A.O.S, escrita por Fernando Dórdio e desenhada por Filipe Teixeira, é uma intrincada intriga, cujo verdadeiro impacto no leitor ocorre depois da leitura do terceiro e último volume. A arte vertiginosa de Teixeira e a urdidura de Fernando, que envolve criminosos do Leste e ex-Fp 25, estará, a partir de agora, disponível numa versão streamline e acertada que corrige a colorização original, oferecendo, dessa maneira, um ambiente mais adequado a um policial negro.


Como é hábito, a Kingpin Books traz-nos um convidado especial vindo dos EU: este ano é a artista Tara McPherson, autora de banda desenhada, criadora de posters e linhas gráficas, assim como pintora de grande talento (evoca-me uma versão poppy de Mark Ryden).

Tara McPherson irá ministrar um workshop gratuito de Arte e Ilustração, no próximo Sábado às 15H00, no âmbito da programação do FIBDA. Consultem o weblog de Mário Freitas, da Kingpin Books, para ficarem a saber como participar neste evento e quais os horários em que os autores das séries de BD apresentadas acima estarão presentes para autografarem os seus livros.

Falta, ainda, falar sobre outra surpresa que a Kingpin Books reserva para apresentar durante o festival, mas dessa falarei em breve.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Sobre BD

Na próxima Sexta-Feira é inaugurada a 19ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora (FIBDA), numa organização conjunta do Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem (CNBDI) e da Câmara Municipal da Amadora.
O local é, mais uma vez, o Fórum Luís de Camões, na Brandoa, mas, como é habitual, várias exposições encontram-se descentralizadas por outros pólos, como a Casa Roque Gameiro, a Galeria Municipal e o próprio CNBDI: consultem a programação para descobrirem quem são os autores convidados e quais os dias em que eles estarão presentes para conversar com o público e personalizar exemplares dos seus álbuns. O tema da edição deste ano é a Tecnologia e Ficção Científica.
O FIBDA termina a 9 de Novembro.

Nas próximas Quinta-Feira e Sexta-Feira, no auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro (dia 23) e na Bedeteca de Lisboa (dia 24), irá ter lugar um Seminário Internacional sobre as sinergias entre as Bibliotecas e a Banda Desenhada.

Transcrevo do programa: «Com a finalidade de estimular a troca de experiências e a reflexão profissionais em torno do papel da banda desenhada como forma de promoção da leitura nas bibliotecas, o Departamento de Bibliotecas e Arquivos da Câmara Municipal de Lisboa pretende, com este seminário, contribuir para a partilha de experiências desenvolvidas por colegas nossos de outros países (Espanha e Suécia), colegas das Bibliotecas Municipais dos Concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, bem como com outras Bibliotecas da Rede Nacional de Leitura Pública, promovendo e estimulando a sua discussão alargada.»

Consultem o programa que é variado e bastante interessante. Recomendo duas das palestras que mais se dirigem à banda desenhada. No dia 23, a Mesa Redonda que irá começar às 15H30, com o tema A BD em Portugal: pontos de vista sobre o mercado e a edição de BD.
Será moderada por Sara Figueiredo Costa e contará com os seguintes convidados: Rui Brito (Polvo), Marcos Farrajota (Mmmnnnrrrg), Maria José Pereira (Asa), Pedro Silva (Vitamina BD), Mário Freitas (Kingpin of Comics), Nelson Dona (CNBDI), Paulo Monteiro (Bedeteca de Beja) e Rui Santos (Devir).

E, no dia seguinte, às 15H00, a Mesa Redonda intitulada A BD em Portugal: autores, crítica, movimentos e tendências. Será moderada por Geraldes Lino e terá como convidados José Abrantes, Filipe Abranches, João Lemos, David Soares, Domingos Isabelinho e Carlos Pessoa (Público).

Apareçam!

Banda Desenhada alternativa


As bandas desenhadas de Marcos Farrajota fascinam-me. Suspeito que a arte dele afaste alguns leitores, amantes de um traço mais perfeito (seja lá isso o que for…), mas eles é que ficam a perder: a perder histórias recortadas por um humor brut, mas inteligente. Na verdade, o registo autobiográfico das bandas desenhadas que se podem ler em Noitadas, Deprês e Bubas, resgatadas de fanzines e reeditadas em boa hora, tem uma lucidez desarmante.

Vocês sabem o que eu penso das histórias autobiográficas (e o Marcos, também...), logo a minha aprovação deste florilégio de deambulações nocturnas, episódios boémios e personagens bizarras pode surgir como uma surpresa, mas, de facto, não há motivo nenhum para se surpreenderem: é que as histórias, autobiográficas que sejam, são mesmo boas. E honestas! No meu glossário, a honestidade intelectual conta muito.

A personagem Marcos Farrajota observa o mundo à distância, mas não com cinismo; prefere ver a participar, é certo, pelo menos no que diz respeito a comprometer-se com cretinos, mas não tem medo de sujar as mãos quando o prémio vale a pena. E se, às vezes, acaba por ser desiludido, fala sobre isso com uma candura que não seria de esperar em apontamentos desta natureza. Mais: quando fala, fá-lo com piada. As histórias de Noitadas, Deprês e Bubas são divertidíssimas.

Não fazia ideia que o dilema entre comer ou não comer meia-dúzia de migalhas de pão poderia ser tão dilacerante, nem estava à espera de encontrar uma exposição tão transparente sobre um acto solitário (ainda bem...) de onanismo... Isto, meus amigos, não é a BD autobiográfica comum que aborrece e desanima: é na minha opinião, pura “BD Gonzo”, híbrida entre o egocentrismo de Hunter S. Thompson e a semi-psicopatia de Larry David.

Felizmente, é, também, um documento importante para se compreender o modo como a BD alternativa portuguesa deve bastante ao trabalho de Farrajota, tanto no que diz respeito à sua divulgação, como à inspiração. Eu bem sei que o Marcos gosta de apresentar as bandas desenhadas dele como peças brutas, mas no que diz respeito ao saber-fazer, elas pouco têm de “bruto”: estão muitíssimo bem elaboradas. Ele sabe, mesmo, contar uma história e isso é que faz uma boa BD.

Bem-vindos ao mundo da personagem Marcos Farrajota. Vale bem a pena conhecê-la.

Apresentação de "Lisboa Triunfante"

A apresentação do meu novo romance, Lisboa Triunfante (Edições Saída de Emergência), correu muitíssimo bem: agradeço a António de Macedo pela excelente introdução que realizou e a Rogério Ribeiro e Safaa Dib pelo acolhimento que nos deram no Fórum Fantástico 2008.



O livro chegará às livrarias em Novembro.

Guia de Leitura

O companion de Lisboa Triunfante já se encontra disponível para download gratuito no site das edições Saída de Emergência.
Consiste num guia que apresenta os temas do livro, sem revelar conteúdos que possam prejudicar a leitura.
O romance chegará às livrarias no início de Novembro, mas, até lá, podem conhecer algumas das personagens.



Bang! #5


Onomatopeia: s.f., formação de uma palavra cujo som tenta imitar ou reproduzir o que significa.

O número cinco da revista BANG!, dedicada à divulgação da literatura fantástica portuguesa e estrangeira, já se encontra disponível para download gratuito no site das edições Saída de Emergência. Com mais de 180 páginas de contos, ensaios, críticas e artigos diversos, é um número a não perder.

Um dos conteúdos inéditos que esta edição apresenta é um extenso discorrer que versa sobre as diferenças de classificação entre livros que se consideram ser parte da chamada literatura de género e outros que são observados como representantes de um conceito de alta literatura: intitula-se Literatura Erudita vs Literatura Popular e é escrito por António de Macedo, João Seixas e eu.