quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fantasia

«Usando o guarda-chuva como um cajado, Aquilino continuou a subir. A tarde escurecia e ele sentou-se debaixo de uma árvore. Tirou uma sanduíche de chouriço, enrolada num pano verde, do bolso do casaco. O chouriço tinha pouca gordura e o pimentão picava na língua; o pão que já começara a enrijecer estava a deixar-lhe a camisa preta cheia de farinha. Lamentou não ter trazido um livro para ler.
Estava sentado num altinho de onde abarcava um vasto horizonte sobre a cidade. Estreitando a vista podia decifrar os contornos da outra banda; à sua volta o vento rinchante abanava a copa das árvores. Não se descobria vivalma; só os rumores próprios dos bosques: o ramalhar da erva; dois ramos secos a baterem um no outro – tactac – uma bolota que caía.
Então, passo a passo, entre os arbustos, como se deitasse o olho ao chouriço, apareceu uma raposa.
Aquilino não a viu romper da vegetação.
O bicho aproximou-se com orelhas altivas; baixando a cabeça, desconfiado, e farejando com o focinho fino. Assim que a viu, Aquilino matou um soluço de surpresa e deixou-se estar quieto. A raposa ergueu a cabeça e olhou para ele: era um animal pequeno, magrinho, de pêlo arrepiado pelo vento. Devagarinho, Aquilino retirou uma rodela de chouriço de dentro do pão e descaindo a mão com gentileza atirou-a à raposa. Ela seguiu a morcela bamboleante com o olhar, mas não se mexeu, continuando a olhar para Aquilino com a cabeça alta.
‘Olha a minha catita’, disse Aquilino com suavidade. ‘Come, linda, come.’
A raposa girou as orelhas e inclinou a cabeça.
O cheiro da carne tentou-a a dar um passo em frente. Aquilino não se mexeu. Vagarosamente, a raposa lambeu o beiço: o focinho afilado, talhado em malícia pura e sonsice, que a saliva anediava. No afago da sombra, sobre a erva fria, a raposa filou a rodela de chouriço e mordiscou, piscando os olhos de satisfação. Aquilino sorriu e procurou uma rodela menos esburgada para lhe oferecer. Atirou-a e a raposa apanhou o naco no ar com um pinote. Aquilino estava a divertir-se.
‘Raposeta vermelheta’, disse, sorrindo. ‘De onde és tu, santinha?’
Entretido, Aquilino falou com a raposa – e, naquele fim de tarde em Lisboa, a poucas horas do espectáculo de fogo-de-artifício, viu algo extraordinário acontecer: entretida, a raposa sorriu para ele.
Olhos amarelos semicerrados numa careta inteligente – o focinho arregaçado num sorriso: um sorriso humano.
Confundido, Aquilino franziu o sobrolho e olhou-a com mais atenção. A ilusão de óptica desapareceu e a raposa voltou a apresentar uma aparência comum: tinha sido uma fantasia insignificante; um truque produzido pela luz moribunda. A raposa mordeu mais uma rodela de chouriço que Aquilino lhe atirou e foi-se embora engolfando-se nos arbúsculos.»

(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Dois: "Fantasia". Edições Saída de Emergência.)

Nas livrarias a 17 de Novembro.