sexta-feira, 31 de julho de 2009

Deus tem um discurso banal (e foi propositado)

Acabei de escrever o meu novo romance esta semana e aproveitei o tempo livre para ler, com mais atenção, alguns weblogs portugueses, relacionados com o Fantástico, enquanto género literário, que eu costumo acompanhar com regularidade (como este e este, que valem bem a pena). Porém, no seguimento disso, descobri, nos posts mais recentes, que se anda a gerar uma espécie de debate/discussão, neste círculo restrito da blogosfera, sobre certos textos escritos por, aparentemente, novíssimos aspirantes a autores portugueses de literatura fantástica; alguns deles publicados aqui, para leitura e análise crítica. A ideia que presidiu a essa apresentação fruiu de outro debate, no qual se discutiu a existência, ou a inexistência, de novíssimos escritores portugueses de literatura fantástica e o valor das suas obras, ainda desconhecidas.

Antes de comentar este assunto, quero deixar uma coisa bem clara: esta será a única vez que irei escrever sobre ele e só o farei porque não encontrei uma opinião parecida com a minha, nos diversos posts e caixas de comentários que consultei.
Acho que uma opinião como esta faz falta para colocar o tema em perspectiva, porque disseram-se coisas que não fazem sentido.

Para começar, existem variadíssimos problemas, relacionados com este “debate” bloguístico, que se levantou, mas a questão que se me afigura como mais urticante é esta: porque é que qualquer candidato a artista, seja ele candidato a escritor, pintor, músico ou realizador de cinema, precisa de andar a chatear os artistas já estabelecidos, da área em que quer vingar, para que leiam, vejam, comentem e critiquem o seu trabalho? Acham que essas pessoas têm que ter tempo livre ou vontade para fazê-lo?
Porquê?

Esta pedinchice pegada é uma consequência exclusiva de, nestes tempos do instantâneo, se ter encurtado a distância entre os autores e o público – coisa que eu, tenham paciência, acho que faz muita falta. Tanto aos primeiros, como aos segundos: é que o autor não é o público, nem o público é o autor; e quando uns começarem a confundir-se com os outros está o caldo entornado. Quando toda a gente é a mesma coisa, ninguém é nada.
Estas questões sobre apreciações críticas pedidas aos escritores pelos supostos aspirantes a escritores teria sido evitada se estes tivessem noção dos limites e soubessem qual é o lugar deles. Falo directamente para vocês: já vos passou pela cabeça ir chatear o George R. R. Martin e pedir-lhe que leia os vossos textos? Ou qualquer outro escritor estrangeiro de literatura fantástica?
Não?
Então porque carga de água é que querem chatear os escritores portugueses?... Transcrevo:

«São pessoas como o Rogério, o Luís, o LFS, o Candeias, o João Seixas, a Safaa e o Barreiros que nos poderão mais ajudar a progredir na nossa escrita. Por isso, as suas críticas são bem-vindas. Não relegando para segundo lugar, como é óbvio, as participações da malta nova! ;)»

«Porra, então façam alguma coisa para que a produção medíocre se possa tornar numa boa produção. Se, em 50 respostas, conseguirem realmente ajudar dois jovens a escrever um pouco melhor, então já terá valido a pena! Para que um futuro melhor se comece a desenhar no horizonte! Vou tentar postar um excerto por dia. Que me dizem desta ideia?»

Sobre citações como estas só tenho a dizer isto: os escritores portugueses de literatura fantástica não têm que fazer absolutamente nada para que «um futuro melhor se comece a desenhar no horizonte» a não ser fazer o trabalho deles: escrever.
Mais nada.

Eu sou escritor, não sou colaborador de uma linha telefónica de socorro aos aspirantes a autores, à espera dos pedidos de ajuda para resolver problemas nos textos, nas cabeças e nas vidas deles ou para «ajudar dois jovens a escrever um pouco melhor». Será que anda toda a gente a viver noutro planeta?
O que é que aconteceu à velha prática de escrever um manuscrito e enviá-lo a um editor para apreciação? Acham que a minha geração andou a pedinchar conselhos aos escritores mais velhos, quando começou a escrever? Quando eu acabava um manuscrito, tratava de enviá-lo às editoras que eu considerava adequadas. Se um exemplo "cá de casa" não serve, sempre podem ler as introduções que o George R. R. Martin escreveu para as obras compiladas no volume Dreamsongs, nas quais ele diz, várias vezes, que começou a escrever para ele, antes de submeter os pequenos contos a revistas. Não há uma única linha em que ele desvende que andou a pedir a autor X ou Y para lhe dar palmadinhas nas costas.

Porque, bem vistas as coisas, de que é que serve ao aspirante saber o que é que um escritor com obra feita pensa do trabalho dele?
O que é que isso pesa na decisão de um editor ir publicar ou não o trabalho que foi lido?
Nada.
A não ser algum enfatuamento serôdio que advirá do facto de se ter alguém que, se calhar, até se admira, a dizer “ai, está muito bem, está muito giro, és capaz, força, continua”. Das duas, uma: 1) ou os aspirantes, que querem que fulano de tal e sicrano leiam os seus trabalhos, andam à procura de uma forma barata de encher o ego ou 2) andam à procura de padrinhos… Se não é nada disto, seria boa ideia mudarem de estratégia, porque, já dizia o outro, “o que parece, é”.

Mas há mais. À medida que o “debate” foi crescendo, transformou-se num manancial riquíssimo de informações sobre o que se passa dentro da cabeça destes aspirantes a autores portugueses de literatura fantástica, entre as quais a incapacidade de aceitar críticas. (Aliás, isso está patente no título de um artigo que foi escrito como reacção às críticas que os escritores com obra feita deixaram nas caixas de comentários dos aspirantes a escritores, após lhes terem sido pedidas, como já vimos, as suas opiniões: “Sobre Críticas e Outros Rebaixamentos”.) Afinal de contas, não se viu que «as suas críticas são bem-vindas».
Nem é preciso dizer mais nada: o título citado acima deixa bem claro o que é que eles pensam das críticas e aquilo que pretendiam. Não desejavam «escrever um pouco melhor»: desejavam encher o ego, ponto. E, como isso não aconteceu, deu-lhes para escrever coisas deste género:

«Não aceito a crítica de me acusarem falta de leitura. Não aceito e pronto. Eu sou um bom falante da língua portuguesa. Do vernáculo ao científico. Posso dar erros, mas quem não os dá? Certamente com revisão minha muitos deles desapareceriam.»

«Penso que não seja por falta de vocabulário. Tenho um vocabulário que sempre excedeu a minha idade, a minha faixa etária, até mesmo as seguintes e tant no ensino como na escrita pessoal sempre primei por um vocabulário mais cuidado que os restantes (penso eu), mas ultimamente tenho tido este problema em manter sempre tudo num mesmo nível

«Basicamente considero-me um old school writer. Escrevo à mão e depois passo as 50 páginas de manuscrito para um documento word. Trabalheira enorme. Mas ninguém disse que seria fácil. Mas isso permite-me também cuidar toda a obra primeiro na generalidade e só depois, então, capítulo a capítulo.»

«Como é óbvio, tendo sido escrito por um rapaz de 15 anos, não se pode esperar uma obra-prima.
No entanto eu, pelo menos, acho que mostra um (se não grande, perto disso) potencial.»

«Quanto às personagens, aí permito-me a discordar completamente de vocês. Não a fiz realistas, não tentei sequer, todo o texto tem um contexto algo... etéreo, para falta de melhor palavra. O Nostranus, ou lá como o gajo se chama, é uma besta só porque sim.»

«Deus tem um discurso banal, e sinceramente foi propositado (…)»

«Nenhum dos escritores dos excertos aqui colocados pelo Francisco teve um curso intensivo de gramática portuguesa. O que tiveram foi tanto como eu, até ao 9º ano e sem muitos pormenores. (…) são erros que facilmente podem ser corrigidos com uma revisão do texto. Alguns deles poderão apenas ser falhas, por simples distracção. E digo-o por experiência própria.»

Tenham vergonha.

Não peçam a pessoas que têm obra feita, e nome respeitado na praça, que leiam as vossas coisas para, depois, lhes responderem desta maneira. Vocês acham que andamos aqui a brincar? Que “esta coisa do Fantástico” é um enorme fórum, onde são todos compinchas? Será que vocês já leram os livros das pessoas que andaram a chatear nas caixas de comentários? Um só, que seja? E se lessem, iriam ser mais comedidos nas vossas apreciações? Iam o tanas!, todos sabem que quem lê, critica; por isso não venham armar-se em viúvas virgens que isso já foi chão que deu uva.

A última questão que quero comentar é a da idade de um escritor e a relação com a qualidade do trabalho.
Não é de estranhar que na maioria dos concursos literários que, de quando em quando, erguem a cabeça, um pouco por todo o lado, se encontre o anonimato como parte imperativa do regulamento. Não só evita nepotismos, e outros ismos, como serve para evitar o estigma da idade: é que quem escreve bem, escreve bem – tenha cinco, dez, quinze, trinta, sessenta ou cem anos de idade.
Essa história dos autores em potência é uma treta.
Tirem isso da vossa cabeça.
Ou o texto é bom ou não é bom. E se não for, não é uma revisão que vai operar milagres.
Como em todas as artes, escrever é algo que sai de dentro para fora. Não vem de fora para dentro. Esqueçam os cursos de escrita criativa e os grupos de discussão, porque se vocês não forem bons, nada disso vos fará ficar bons.
A escola do escritor é a leitura. Só isto. A leitura, a reflexão sobre o que se lê e as regras da gramática. Que ele pode ou não respeitar, de acordo com o estilo. Mas não pensem que podem mascarar as vossas fraquezas dizendo que elas são o vosso estilo. Acham que enganam quem? Os vossos amigos, talvez, se eles estiverem para aí virados, mas os leitores exigentes não se deixam enganar. Por isso, quando vocês escrevem coisas deste género,

«E já agora, estão interessados em ler um texto (non-fantasy, aviso já), da minha autoria, que eu considero de qualidade? É um estilo de escrita mais solto e vago, que sinceramente duvido que vos agrade, parece-me que gostam de algo mais concreto, directo. Mas pelo sim pelo não, dêem-me a vossa resposta.»,

e ainda,

«(…) o conto como está não está nada de especial, mas sendo reescrito e levando uma grande volta (com mais 3 anos de leituras e escrita em cima) acho que poderia dar um conto engraçado. (…) É o que eu digo, são BOAS obras, na minha opinião. Esta não é publicável, mas o BOM está lá. Só falta, na minha opinião, trazê-lo ao de cima :)»,

querem ser levados a sério? Desculpem, mas não sou capaz de vos levar a sério.

Mais uns exemplos para toda a gente perceber o nível de ilusão a que isto chegou:

«Não há quem escreva bem e com originalidade, dentro do género? Há. (…) Uns têm, certamente, mais prática que outros, mas todos têm grande potencial para se tornarem os novos nomes do género (…) Esta última obra, atrever-me-ia a compará-la a uma qualquer do Neil Gaiman, em termos de originalidade. E não digo isto só por dizer - quem me conhece bem sabe que não evoco o nome do Neil em vão (xD)-, o Hedonê é MESMO bom!»

«Quanto ao Hedonê, creio que é uma obra soberba, tanto em termos de história como de escrita, ainda que precise de levar uma revisãozita.»

As obras soberbas não precisam de ser revistas. Por isso é que são soberbas. Mas uma obra má é uma obra má.
Acabou-se.
Não há volta a dar-lhe.
Com certeza que não será com «uma revisãozita» que se transformará o tal Hedonê no American Gods.
Não é assim que se faz.
Como se faz é fazer bem, desde o início até ao fim. E isso, cada um tem de aprender a fazer sozinho, não fosse o ofício da escrita um acto isolado que exige tempo e meditação. Não é nos “fóruns da net” que se aprende a ser o Neil Gaiman: aliás, não se aprende a ser o Neil Gaiman, em lado nenhum. Se anda por aí alguém com essa pretensão, está em maus lençóis.

«O que falha, na minha opinião, é a comunicação entre o Fandom e os comuns leitores, que são os escritores de amanhã.»

Isto está errado até aos ossos. Os comuns leitores de hoje não são os escritores de amanhã: os comuns leitores de hoje são os comuns leitores de amanhã. Os escritores de amanhã são aqueles que já são escritores hoje.
Vamos lá a ver uma coisa: vocês querem ser escritores, porquê?
Porque acham que é giro? Que dá dinheiro? Ou apenas acham que querem ser escritores, porque são leitores que gostam muito de ler uma determinada coisa e escrevem histórias semelhantes àquilo que lêem? Se é para isso, já há um nome: fan fiction.
Eu também gosto muito de ouvir música, mas não me passa pela cabeça andar a dizer que sou músico ou que quero sê-lo. Sinto-me fascinado pelos mecanismos secretos do corpo humano, mas não me passa pela cabeça dizer que sou anatomista ou que quero sê-lo… A ideia que eu quero transmitir é que não se diz, com leviandade, que se quer ser escritor.

Para começar, é preciso sê-lo, antes de sequer se pensar em sê-lo. É assim que acontece com todos os artistas.
Porque estamos a falar de arte, caso alguém se tenha esquecido.
Vocês fazem ideia da trabalheira que dá ser escritor?
À séria?
Acham que se pode escrever uma coisa qualquer, que, depois, faz-se «uma revisãozita» e está pronto? Que o texto fica ao nível dos romances do Neil Gaiman? Vocês estão muito enganados.
Bem sei que esta poderá ser uma opinião – e uma realidade – impopular, mas, como dizia o Léon Bloy, um dos meus escritores preferidos, «o autor não prometeu divertir ninguém – prometeu, antes, o contrário e cumpriu, fielmente, a sua palavra.»

Enfim, trocado em miúdos: cresçam e apareçam.
Em essência, toda a gente que escreve no fórum do Filipe Faria foi citada como sendo um autor português de literatura fantástica, mas… quantos é que já submeteram trabalhos a uma editora?
Esse fórum deve ser um verdadeiro viveiro de talentos. Um deles até está ao nível do Neil Gaiman – é extraordinário. Para quando um aspirante a autor ao nível do George R. R. Martin ou Tolkien?
Só é uma pena que esse fórum não ande a produzir talentos que escrevam melhor e que tenham menos arrogância em cima das costas. Em vez disso, dá-nos talentos para os quais a gramática não interessa e os defeitos contam como efeitos arrojados, à la pós-modernismo.
Ainda por cima, talentos que têm a lata de ficar danados com críticas sinceras que lhes fizeram as pessoas que eles andaram a chatear nos weblogs pessoais, pedindo-lhes que fossem ler os excertos.

Não gozem com a nossa cara e aprendam a escrever, se forem capazes.