sábado, 12 de setembro de 2009

Madeira!

Hoje à tarde fui dar um passeio a pé e entrei numa livraria da minha vizinhança, a qual não visitava há uns meses, e, de modo descontraído, agarrei num dos livros de literatura fantástica, escrita por novos autores portugueses, que foi publicado há pouco tempo. Li a contracapa, a primeira página e não precisei de ler mais nada para perceber que aquilo era mau. Desculpem lá a arrogância, mas já leio há anos suficientes para perceber quando um livro é bom ou mau.

Não vou revelar o nome do livro, do autor nem sequer o da editora, porque, para ser sincero, não sou crítico e não me fica bem estar a ir mais longe do que estou a ir, mas, para ser sincero outra vez, não posso deixar de expressar a minha opinião sobre o que está a suceder no campo da literatura fantástica escrita e editada em português. Vou ser o mais sintético possível, porque aquilo que tenho para dizer resume-se em poucas palavras.

Em primeiro lugar, tenho a ideia de que um género, enquanto identidade (à falta de melhor nomenclatura) de uma obra artística, deve ser avaliado pelos melhores trabalhos que os autores que nele encontram um modo de expressão têm para oferecer e não pelos piores trabalhos que, de uma forma ou de outra, acabam por vir à superfície. Penso que isto é importante, porque de outra forma será impossível mostrar ("convencer" é uma palavra com um lastro demasiado pesado) aos detractores do género Fantástico que ele serve de parteira a obras inteligentes, pertinentes e capazes de rivalizar com os melhores trabalhos acolhidos pela literatura dita erudita. Ou seja, não será, com certeza, com o tal livro que eu encontrei hoje à tarde que os académicos, os críticos ou até os leitores comuns, adversos ao género Fantástico, irão persuadir-se que ele serve de arauto a obras literárias capazes de prolongar o impacto da recepção após a leitura. Talvez nunca irão persuadir-se disso, até, mas, ao menos, dêem-lhes hipótese de mudarem de ideias.

Estou cansado de viver nestes tempos politicamente correctos em que tudo tem o mesmo peso e a mesma importância: não é verdade. As coisas não têm todas o mesmo peso. As coisas não têm todas a mesma importância.
Escolhas editoriais desta natureza, baseadas somente na percepção de que o género Fantástico atravessa um período de popularidade junto do público, sem quaisquer critérios que as orientem, ainda poderão vir a ter consequências aborrecidas daqui a uns tempos. Pelo que me diz respeito, ainda bem que a literatura fantástica atravessa uma fase de grande popularidade (acho que devia ser ainda mais popular), mas é preciso ter em mente que nem tudo aquilo que, à partida, se pode inscrever como literatura fantástica vale a pena ser publicado. Ou melhor: escrito.

Às vezes acho que ainda ninguém deu conta que estamos a falar de livros.
Não é suposto um livro ser uma coisa séria?
Mesmo um livro humorístico é uma coisa séria - eu acho que The Third Policeman, de Flann O'Brien, por exemplo, é um livro sério que se farta, apesar de ser humorístico. Eu acho que Jerusalem Poker, de Edward Whittemore é um livro sério que se farta, apesar de ser humorístico. Porque é que há outros livros que, mesmo não sendo humorísticos, como aquele que eu encontrei hoje, não são sérios?
Acho que a resposta é óbvia: porque os autores não se levam a serio.
Ora, se eles próprios não se levam a sério, porque carga de água é que os leitores devem levá-los a sério?
Porque é que os leitores devem pagar mais de vinte euros por um livro mau? Porque é que os leitores devem pagar mais de vinte euros por um livro mau que, flagrantemente, foi escrito por um autor que não conhece o género em que quer ingressar? Aliás, porque é que ele quer ingressar neste género, em primeiro lugar?
Eu acho que estas perguntas são importantes, porque acho que a literatura é uma coisa importante - não deve ser tratada com leviandade. Criar não deve ser tratado com leviandade.

Não tenho respeito por um escritor que queira escrever literatura fantástica e não conheça o género Fantástico. Vocês acham que um aspirante a escritor de literatura dita erudita é olhado com complacência pelos académicos quando demonstra ignorância sobre determinados autores que fazem parte do cânone? Então porque é que isso acontece no campo da literatura fantástica? Porque é que não insistimos que um escritor, um crítico, um editor - um leitor - de literatura fantástica deva conhecer os melhores representantes do género? Aliás, como é que alguém quer escrever literatura fantástica sem ter lido aquilo que outros escritores já fizeram?

Estou a olhar para as minhas estantes e vejo montes de livros que, de certeza absoluta, só meia-dúzia de gente deste país é que já os leu. Seria interessante perguntar ao autor do livro que eu encontrei hoje se já leu alguma coisa escrita por Gene Wolfe, Mervyn Peake, Michael Swanwick, Sinclair Lewis, Thomas Disch, John Wyndham, Alfred Bester, Clive Barker, William Hope Hodgson, Edward Carey, E. R. Eddison, Poppy Z. Brite, Thomas Ligotti, Shirley Jackson, Walter M. Miller e outros que eu poderia estar aqui horas a fio a transcrever. É que o género Fantástico não se resume à Juliette Marillier, ao Neil Gaiman e à Stephenie Meyer. Acho que está na altura de começarmos a levar as coisas a sério, se queremos que o género Fantástico seja olhado com outros olhos pelos leitores que o desdenham porque têm preconceitos, ideias feitas ou medo - porque não dizê-lo? - desse tipo de literatura.

Isto faz-me lembrar a velhíssima interrogação metafísica sobre se uma árvore que cai na floresta sem que ninguém esteja lá para ouvir faz ruído quando bate no chão...
Será que quando um livro mau é publicado, e não existam leitores capazes de perceber se ele é bom ou mau, ele é, de facto, mau?