sábado, 28 de março de 2009

Transmissões Desordeiras (2ª Parte)

A mente antrópica

You introduced me to my mind
and left me wanting you and your kind.
Black Sabbath, in "Sweet Leaf", Master of Reality


As criaturas humanas não vivem num universo composto apenas por quatro forças (gravidade, electromagnetismo, força forte e força fraca), mas num mundo feito de ideias e pensamentos que concorrem entre si com selvajaria, como tubarões-areia no saco vitelino, para nascer — para serem pensados. Inversamente às partículas atómicas, nós possuímos um interface único para nos compatibilizarmos com heterogeneidade com aquilo que nos circunda: uma acepção de individualidade, uma consciência.
A nossa mente racional faz de nós autênticos inseminadores de antropia. É mais fácil criarmos desordem que investirmos esforços para manter o statu-quo. Somos criaturas complicadíssimas porque somos preguiçosos.
Mas porquê antropia? Traduzirá que todos os tipos de desordem são fenómenos entrópicos? Sim, porque todos os tumultos e confusões consistem, sobretudo, em mudanças aleatórias, sujeitas às contingências do futuro. Brian Greene, no seu livro The Elegant Universe, expõe:

Entropia é o grau de desordem ou imprevisibilidade. Reparem: se a vossa secretária está coberta com camadas de livros abertos, revistas apenas folheadas, jornais velhos e correio lido e esquecido, encontra-se num estádio de desordem elevada, ou entropia elevada. Por outro lado, se o vosso local de trabalho está perfeitamente organizado, com os tais artigos de jornal arquivados em dossiers alfabetizados, as revistas arrumadas por ordem de publicação, os livros distribuídos nas prateleiras por ordem alfabética de acordo com o nome dos autores e as canetas nos seus suportes então encontra-se num estado de ordem elevada ou de baixa entropia, que é o mesmo.
Quando a vossa secretária está arrumada e limpa, o menor indício de desarrumação — mudar a ordem das revistas, dos livros, dos dossiers com os artigos ou deixar as canetas espalhadas sobre a madeira — irá perturbar o elevado grau de organização. Isto é a baixa entropia. Inversamente quando a secretária está uma pocilga, a desarrumação não vai afectar o estádio em que ela se encontra. Apenas a vai deixar como já está: uma confusão! Isto é a entropia elevada.

Compreendam que mesmo gastando tempo a arrumar todo o caos continuamos a aumentar o grau de entropia apenas com o calor emitido pelos nossos músculos durante a tarefa. Aparentemente não existe uma solução para este problema.
Voltemos à história de Max Anderson (o terceiro) que serve de maquete para esta exposição e vamos observar o momento em que essa personagem lê o diário de Skeldar aos amigos numa determinada altura da viagem até Sarajevo. (A viagem, per se, não nos deixa esquecer o carácter temporal do fenómeno entrópico.)
O que prossegue nas páginas posteriores é uma história dentro da história: mais personagens e mais pormenores que não serão desenvolvidos com conclusões satisfatórias; em suma, mais informação — mais entropia. Contudo, não é necessária a inclusão de uma segunda situação narrativa, dentro da primeira, para criar entropia; ou melhor, não é necessário fazê-lo de modo deliberado. A verdade é que o fazemos naturalmente sempre que lemos um texto ou assistimos a um filme. À luz desta ideia, avaliem esta transcrição retirada do livro Consciousness Explained, de Daniel C. Dennett:

- Recorda a nossa conversa sobre a interpretação. Quando estamos na presença de um trabalho que sabemos ser vagamente autobiográfico conseguimos decifrar muita informação sobre a vida do autor nos acontecimentos fictícios, por isso o romance é, forçosamente, sobre esses eventos verdadeiros. O autor nem poderá estar consciente disso, mas, mesmo assim, nesse sentido que acabei de evidenciar, o juízo é acertado. Essas eventualidades são o tema do trabalho, porque são elas que nos dão as pistas que nos levam a formular as razões pelas quais o texto foi escrito, afinal de contas.

- Isso forçosamente. Então e indeterminadamente?

- Bom, então, é sobre nada. É apenas ficção. Pode transmitir a ilusão de que se concentra em pessoas, lugares e ocorrências fictícias, mas, realmente, não fala de nada.

- Mas quando leio um romance esses acontecimentos fantasiosos ganham vida! Alguma coisa acontece, também, dentro de mim: eu vejo-os! Ler e interpretar um texto cria histórias na minha imaginação e imagens das personagens e do que elas fazem. Por isso quando vou ao cinema ver a adaptação de um livro que conheço dou comigo a pensar que nada do que estou a ver se combina com o que imaginei.

- Certo! No livro Fearing Fictions, o filósofo Kendall Walton (1978) assegura que esses produtos imaginativos criados pelo leitor complementam o texto do livro do mesmo modo que as ilustrações, combinando-se com as palavras para fabricar um mundo (ficcional ou heterofenomenológico) maior. Essas adições são perfeitamente reais, mas são apenas mais “texto” — não feito de fantasia e sim de modos pessoais de ver.

Afigura-se que uma história atrai histórias, como se existisse em sua órbita uma força da mesma ordem que a gravidade: uma narratividade ingénita do campo sematológico.
Vale muito a pena apresentar um belo exemplo de histórias dentro de histórias contido no livro Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid de Douglas R. Hofstadter. No capítulo Little Harmonic Labyrinth, Tartaruga e Aquiles são raptados por uma sombria personagem que as quer cozinhar. Em casa do raptor, o duo descobre um livro chamado As Provocantes Aventuras de Tartaruga e Aquiles Nos Mais Variados Locais do Globo e começa a ler na página que se encontra aberta um conto intitulado Djinn Tónico.
Nesse episódio do livro, Tartaruga 2 e Aquiles 2 entram numa litografia de Escher graças a uma fórmula que tem a faculdade de comprimir quem a bebe para dentro de qualquer objecto, como se de um génio da lâmpada mágica se tratassem (daí o nome da beberagem: Djinn Tónico)
A partir daí desenrola-se toda uma galeria de múltiplos Aquiles e Tartarugas que penetram em outras representações artísticas, em outras histórias e noutros livros encontrados durante as viagens. Parece um fenómeno entrópico e, realmente, não se afasta dessa definição, mas é mais que apenas isso. É um mecanismo muito importante chamado estrutura recorrente. Transcrevo do livro de Hofstadter:

Uma das formas mais comuns de recorrência na vida vulgar é quando adiamos uma tarefa para nos concentrarmos em outra mais simples, normalmente do mesmo género. Eis um bom exemplo: um empresário costuma receber muitos telefonemas e fala com A no momento em que B decide ligar. O empresário pergunta ao A se não se importa de aguardar um instante e troca de interlocutor pressionando um botão. Claramente, o que A pensa sobre o assunto não tem peso nessa decisão. Mas agora é C quem telefona e a mesma interrupção é jogada sobre B. Isto pode continuar infinitamente, mas não nos vamos entusiasmar. Imaginem que C desliga e B prossegue onde tinha ficado. Entretanto, A continua à espera, tamborilando os dedos na mesa e a ouvir o muzak pavoroso que é canalizado pelo fio do aparelho. A conclusão mais simples é que ele espere que B termine a sua chamada, mas isso pode não acontecer se D telefonar quando já não se esperava ouvir notícias suas.
O conjunto cresce (…) numa espécie de “bola de neve matemática”. Mas esta é a essência da recorrência — um objecto ser definido por versões mais simples de si mesmo (…). E a numeração recorrente é um processo no qual coisas novas emergem de coisas antigas de acordo com regras exactas (…). Parece que sequências recorrentes deste género possuem uma espécie de comportamento complexo inato e quanto mais longe as acompanhamos menos previsível o sistema se torna. (…) Não será esta uma das propriedades da inteligência? Em vez de considerarmos programas compostos de comandos que podem correr de modo recorrente, por que não investimos na sofisticação desses modelos e inventamos programas que sejam capazes de se reinventar a si próprios — programas que actuem sobre outros programas, reparando-os, ensinando-os e ajudando-os a evoluir? É esta espécie de recorrência em rede que, muito provavelmente, se encontra no coração do pensamento inteligente.


Se o pensamento recorrente que nos leva a criar histórias dentro de histórias (ou filmes dentro de filmes, (frases entre parêntesis dentro de frases entre parêntesis) ou bandas desenhadas dentro de bandas desenhadas) é um ingrediente vital do raciocínio inteligente então a antropia que construímos enquanto vivemos é apenas um epifenómeno — apenas qualia! E poderá mesmo sê-lo, já que a entropia, e, por afinidade, a antropia cunhada neste texto, apenas desarruma e não transforma. Por conseguinte, não influi um efeito preponderante sobre a natureza dos objectos. Uma transcrição que suporta esta ideia da antropia como um epifenómeno do pensamento inteligente vem novamente de Hofstadter:

Quando a Inteligência Artificial atingir o nível da humana — ou o ultrapassar — será assombrada pelos contínuos problemas sobre a natureza da arte, da beleza e da simplicidade e será contra as armadilhas destas matérias que batalhará para encontrar sentido e conhecimento.


Lembram-se quando mencionei que a entropia pode ser enfadonha? Na conclusão da banda desenhada Cão Capacho Bósnio, as personagens chegam ao fim da viagem que empreenderam até Sarajevo, inspiradas pela granada engravada, e descobrem que todo o cenário envolvente repete esse objecto, infinitamente, à guisa de padrão.
Pensem na secretária desarrumada do exemplo oferecido por Brian Greene. As mudanças provocadas pelo aumento de entropia passam despercebidas, em virtude da elevada desordem em que se inserem. Elas estão presentes, claro, mas não se inscrevem e a superfície acaba por assumir um aspecto homogéneo.
Um exemplo mais perfeito é a chuva emitida por um ecrã de televisão não sintonizado: observamos milhares de pontos luminosos a moverem-se, freneticamente, de modo imprevisível, como girinos numa caixa de Petri, mas a imagem que transmitem ao nosso cérebro não nos surpreende. A entropia tornou-se comum e tão anódina quanto um padrão num papel de parede. Já não é entropia: é spleentropia.

Quanto mais as coisas se complicam, mais elas deixam de nos provocar. Já nada me surpreende!, dizemos a encolher os ombros quando uma situação má se torna ainda pior. Qualquer técnico de efeitos visuais a trabalhar num estúdio de cinema em Hollywood sabe que quando se tenta deslumbrar demasiado a assistência, ela perde a concentração.
A repetição ad nauseam da granada evoca-me os enantiomorfos, objectos que são imagens reflectidas uns dos outros, e isso irá servir para vos introduzir na conclusão deste ensaio.

Armagedão

Vou mudar-me para uma galáxia menos complicada.
Dr. Manhattan, in Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons)


Pode a antropia introduzir ordem num sistema?
Pode alguma das suas formas imprevistas assumir o rosto da ordem, assim como o matraquear dos chimpanzés de José Carlos Fernandes na história A Literatura Estocástica, integrante no volume A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto, pertencente à série de banda desenhada A Pior Banda do Mundo, produz páginas percebíveis? Aponto dois breves exemplos literários de ordem nascida da antropia/entropia: a conclusão do episódio atributivo aos dois enantiomorfos preferidos de muita boa gente, Tweedledum e Tweedledee, das aventuras ultra-entrópicas de Alice no eterno País das Maravilhas criado por Lewis Carroll; e o desfecho em Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons.
No segundo exemplo, Adrian Veidt descarrega uma aberração artificial sobre Nova-Iorque com o objectivo de cessar o caos que agarra o globo com mão-de-ferro, mas no epílogo a entropia eleva-se epirograficamente.
No primeiro caso, os gémeos decidem lutar até à morte para resolverem uma questão familiar e Alice é obrigada a vesti-los com todos os objectos que eles são capazes de lembrar. Ambos acabam por ficar tão pesados que mal se conseguem mexer sob a quantidade de bric-à-brac. A batalha é invalidada porque um corvo gigante desce dos céus, ensombrando o sol, e obriga-os a fugir. O aumento exponencial de entropia expresso na constituição da armadura termina numa espécie de eclipse solar que talvez tenha sido inspirado na guerra que o rei Aliates, da Lídia, moveu contra Ciaxares, rei dos Medos (no sexto ano da guerra, em 28 de Maio de 585 a.C, um eclipse solar interrompeu a contenda e, acidentalmente, trouxe a paz).
Arriscaria a hipótese destas explosões inesperadas serem outra espécie de entropia. Talvez uma hiper-entropia, para respigar a terminologia de Baudrilard, mas penso que não podemos falar de hiper-entropia (mais entrópica que a própria entropia), porque, segundo a orientação do autor do conceito de hiper-realidade, ela teria de ser artificial: uma entropia de pechisbeque, erguida para imitar e competir com a entropia real. A entropia nunca poderá ser artificial e a antropia ainda menos, pois são contingentes de movimentos naturais que se inscrevem no espaço e no tempo. Vou ser mais preciso.
Imaginem que alguém decide construir um Parque da Entropia, no qual tudo está programado para funcionar às avessas e se auto-complicar. Se uma falha dispara em qualquer mecanismo regulador surge um princípio de entropia não prevista pelo sistema: o que significa que da hipotética entropia artificial nasce a entropia real.
A entropia é, nesse sentido, semelhante ao cancro.

As células somáticas não estão destinadas a transmitir os seus genes como as células germinativas estão. Podem multiplicar-se um indeterminado número de vezes suficientes para se coalescerem num órgão, um coração ou um cérebro, mas a diversão acaba cedo. A terrível excepção são as células cancerosas que se multiplicam sem parar. O mais sinistro é que este comportamento, que mais parece copiado do ciclo reprodutivo de um vírus, é o procedimento normal de uma célula. Observem esta asserção de Richard Dawkins, transcrita do livro The Ancestor’s Tale:

O que o cancro possui de mais surpreendente é que não seja mais comum do que aquilo que é. Bem avaliadas as coisas, cada célula somática descende de uma linhagem contínua de biliões de gerações de células germinativas que nunca pararam de se dividir. Ser transformada de repente numa célula somática, como uma célula do fígado, e aprender a arte da não-divisão é um acontecimento inédito em toda a história familiar dessa célula.

A antropia, a entropia e o cancro partilham a capacidade para se propagarem aumentando de maneira gradual, mas enquanto o último conduz à corrupção e à morte as primeiras parecem ser, relativamente, inofensivas. É verdade. Ainda ninguém morreu, directamente, vítima de antropia, mas recordem a dormência sensorial que a saturação de informação fortuita inflige na nossa percepção do mundo.
No seu grau mais elevado, a antropia pode motivar a morte intelectual aviltando a animação e anulando a aptidão para aprender. Se o cancro inicia o processo gradual da degeneração do nosso organismo, a antropia suscita um mecanismo da mesma categoria na senciência.
É irónico comprovar que nenhum ditador se lembrou de promover estádios de entropia social para desvitalizar as populações, invés de forçar uma ordem repressiva que não oferece espaço ao desenvolvimento individual.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Transmissões Desordeiras (1ª Parte)

(O ensaio que se segue foi escrito em 2005, a convite da Bedeteca de Lisboa, para integrar o catálogo da exposição de banda desenhada e ilustração Salão Lisboa 2005, que, nessa edição, teve como tema o fenómeno da Entropia.)

O universo cabotino


Nós somos poeira estelar animada.
Descendentes adolescentes da matéria cósmica.
Howard Bloom, Global Brain

Nos meus momentos mais delirantes penso que o próprio universo é uma estrela pop e nós, pobres criaturas, somos elementos que conformam o clube de fãs dele, enfeitiçados pelo magnetismo da unidade do seu eu.
A vida é a obra de arte do Todo, e, como todas as obras de arte, ganhou uma dimensionalidade insciente às intenções do "criador". Proteínas animadas por um fenómeno de natureza eléctrica, tornadas células e amoldadas em organismos que emergiram do mar para fumar às escondidas do Pai, acabaram por desenvolver mãos desembaraçadas o bastante para embaraçar tudo em seu redor. Pensem em nós, eucariotas, como personagens secundárias, associadas a um drama interpretado por um único actor principal. Os nossos papéis resumem-se a ideias irresolvidas, infinitamente, e é fácil compreender a razão pela qual complicar assuntos é o lema da família: porque queremos influir significados nas coisas.
O cosmos sofre de um death wish e a sua agenda autista esconde um plano megalomaníaco, digno de uma personagem de Shakespeare: terminar a actuação com um grande rasgo! Na sua ambição, o universo é demasiado gigante para caminhar para a entropia.
Essa desordem destruidora, mas de pechisbeque, está reservada para nós, underdogs.

Enter entropia

E de uma forma que eu achei extremamente confusa,
ele começou a falar sobre uma coisa chamada entropia.
Thomas Pynchon, The Crying of Lot 49

O que é a entropia?
O étimo desse substantivo é o vocábulo grego entrope, que siginifica mudança. A menção a Shakespeare não foi inocente, porque desconhecer a segunda lei da termodinâmica é o equivalente científico à ignorância sobre a existência desse escritor nos círculos literários.
Cunhada em 1865, pelo físico Rudolf Clausius, a entropia é vulgarmente definida como uma grandeza física que expressa o estado de qualquer sistema termodinâmico reversível. É a razão entre a variação da quantidade de calor nessa espécie de sistemas e a temperatura absoluta à qual se operou a mudança. Em síntese, podemos aceitar a significação de que a segunda lei da termodinâmica expressa que a entropia total de um sistema fechado aumenta sempre. Mas o que é um sistema fechado? Se fecharmos os olhos à troca de energia que pactua com o Sol, o nosso planeta pode ser observado como sendo um sistema fechado na grandeza do universo; provavelmente, trata-se do único exemplo credível de um sistema dessa natureza porque, na prática, um verdadeiro sistema fechado, que não troque energia e matéria com o espaço que lhe é vizinho, não existe. Por seu mérito, estabeleceu-se que o valor de uma grandeza física associada a um sistema fechado permanece imutável ao longo da evolução temporal desse sistema, desde que ele não invista numa cooperação com outro.
É esta adiabaticidade que vem à memória quando se contempla o problema da velocidade da luz, constante de acordo com Einstein, mas variável segundo João Magueijo que no livro Mais Rápido Que a Luz coloca a hipótese dela ter sido maior no início da formação do universo.
Esta premissa, alcunhada de Teoria da Velocidade da Luz Variável, apresenta soluções para três paradoxos pertencentes às especulações académicas sobre a origem do cosmos: a homogeneidade do universo; a sua morfologia; e a força gravitacional.
O primeiro paradoxo apresentado relaciona-se com a teoria da expansão do universo, desde o primeiro momento, após o Big Bang, até este preciso momento. Se a velocidade da luz é constante, o que obrigaria a pensar no universo como sendo um espaço adiabático, no qual é impossível intercambiar energia com o exterior (imperativo para que a velocidade da luz se atrasasse), a homogeneidade do cosmos não é uma hipótese correcta porque as zonas limítrofes do seu crescimento ainda não foram iluminadas; não em virtude dessas fronteiras se deslocarem a uma velocidade superior à da luz — o que é fisicamente impossível —, mas pela condição de criarem vácuo entre elas a uma velocidade superlativa.
Ou seja: múltiplas regiões do cosmos estão às escuras em prejuízo de outras, derrubando a ideia de um universo isotrópico? Contudo, se a velocidade da luz não é constante, e foi superior à velocidade de inflação do universo no início da "criação", todas as áreas poderão estar em contacto.
Novíssimas descobertas sobre um novo tipo de energia chamada energia escura obrigam a pensar sobre o fim de todas as coisas de outra maneira. Um epíteto que parece decalcado de um episódio da série televisiva The Outer Limits, mas que é muito importante para, mais à frente, expor a ideia principal que conduz este ensaio.

Black nº 1

No que diz respeito à sua constituição,
suponho que a matéria que Ammi observou
seria uma espécie de gás.
Mas um gás que obedece a leis que não pertencem a este universo.
H.P.Lovecraft, The Colour Out of Space

- Que faço com isto?
- Aduba as tuas florzinhas, Greg.
Diálogo entre Greg Feely e Mother Dirt, in The Filth (Grant Morrison, Chris Weston)

O físico alemão Christiaan Huygens, nascido e falecido no século XVII, foi o primeiro cientista a colocar a hipótese de que o espaço não é vazio. De acordo com a sua intuição, o universo encontrava-se preenchido com um médium chamado éter luminoso, fluente inspirado pelo aeter que os gregos da idade clássica imaginavam ser o constituinte das estrelas. No final da segunda metade do século XIX, foram as célebres experiências de Abraham Michelson e Edward Morley sobre a velocidade da luz que influenciaram a comunidade científica a observar o fenómeno desse fluido com algumas reservas e a duvidar da sua veracidade. Porém, apenas no século XX a existência do éter foi sendo lentamente rasurada a partir da publicação da teoria da relatividade de Einstein. Não obstante a falsidade do conceito de éter, o astrónomo suíço Fritz Zwicky descobriu, em 1933, a presença de uma matéria náufraga na imensidão do cosmos: a matéria escura.
Superior em quantidade à matéria comum numa relação de 10 para 1 (o que significa, aproximadamente, que 90% dos constituintes de uma galáxia são invisíveis), a matéria escura pode ser entendida como o equivalente científico da Qliphoth da mitologia cabalística hebraica: essa matéria negra e densa, antagonista da vida, com a qual a sefira Daäth é constituida.

Onze maldições ecoaram do monte Ebal, onze os senhores da Qliphoth, e nas suas cabeças viviam as duas forças adversárias.
(Cântico retirado do ritual “Portal Da Câmara do Adepto”, da Ordem Hermética Golden Dawn.)


Aleister Crowley definiu essa substância como sendo excrementos das ideias e no livro The Golden Dawn, um manual sobre essa sociedade hermética inglesa escrito por Israel Regardie, antigo aluno do Mestre Therion, Qliphoth é mencionada sob a designação de matéria escura; ou conchas dos mortos. Transcrevo a explicação oferecida por Bill Whitcomb em The Magician’s Companion:

Qliphoth (heb.): Literalmente, concha; invólucro. Usado para descrever planos extraterrenos habitados por demónios, forças negativas e destrutivas e as cascas dos mortos em decomposição. (…) Pode ser vista como o negativo da Sephiroth, a Árvore da Vida. Assim como a Sephiroth traduz progresso, evolução e reunião com o divino, a Qliphoth encerra degeneração, putrefacção e entropia. (…)
É, com efeito, a lixeira do universo.


De todas as partículas infinitesimais que constituem a matéria escura as mais conhecidas serão certamente os neutrinos, que atravessam o espaço vazio nos nossos corpos a toda a hora, mas existem outras, mais insondáveis ainda, como axiomas ou neutralinos. Seguramente, a matéria escura é confusa o suficiente para desafiar catalogações, todavia a energia escura é muito mais misteriosa.
No início dos anos 90, estudos astronómicos sobre a formação de supernovas levaram à conclusão de que a expansão do universo está a acelerar, invês de abrandar, o que contraria de maneira directa a teoria da gravidade. Ao agente responsável por essa força de aceleração chamou-se energia escura.
É uma força que preenche todo o universo, inferindo pressões negativas descomunais. O efeito que essas pressões violentíssimas, agindo no sentido inverso ao da gravidade, irão influir será o grande rasgo que citei no início: o universo vai rasgar-se pelas costuras num prazo estimado entre 100 a 300 biliões de anos.
Um bilião de anos antes da catástrofe as galáxias estarão tão afastadas umas das outras que não poderão ser observadas através de um telescópio. O acto final da peça será exibido para uma sala vazia, pois é improvável que a vida na Terra sobreviva à morte do Sol; mesmo assim, se precisávamos de uma única razão para aceitar o facto de que somos personagens secundárias neste teatro imaginado para o universo brilhar é esta.

Enter Antropia

Tem poesia.
A poesia que um engenheiro aprecia.
Thomas Pynchon, Gravity's Rainbow

Naturalmente, o Acaso interveio.
Luke Rhinehart, The Dice Man


Talvez o conceito de entropia, no sentido da crescente desordem num determinado sistema reversível, não faça sentido quando se pensa no universo... O mesmo não se pode dizer da entropia presente nas actividades dos organismos - e, em particular, na vida humana. Nós somos viciados em entropia e não conseguimos realizar as tarefas mais simples sem as transformar em casos federais.
Vou expor algumas considerações sobre o fenómeno entrópico nas nossas relações com indivíduos e coisas, mas usarei um neologismo cunhado por mim para diferenciar esta entropia "humanista" daquela que alude, em exclusivo, à física: vou chamar-lhe antropia (anthropos + entrope) e servir-me dela para nominar fenomenologias desta espécie nos campos sociais, filosóficos ou metafísicos.
Apresento-vos a história Cão Capacho Bósnio, de Max Anderson e Lass Sjunnesson, uma banda desenhada que usarei como blueprint para a maioria dos meus argumentos e que foi publicada no número seis da revista Quadrado, uma edição da Bedeteca de Lisboa.

Esta pequena história tem início num portentoso pavilhão, no qual se procede a uma cerimónia de entrega de prémios de banda desenhada no âmbito de um festival. Max Anderson surge como principal protagonista entre a multidão de figurantes. O leitor compreende desde o início que a ambiência de afastamento de perigo que se experimenta no interior do salão possui qualquer coisa de artificial e é precisamente no momento em que uma quadrilha de aviões militares sobrevoa o edifício que Max (chamemos-lhe Max 2, posto que o 1 é o autor da banda desenhada) é chamado para atender um misterioso telefonema.
A voz que comunica com Max é a de Stefan Skeldar, um antigo colega de universidade que ele usara como imagem para uma personagem numa banda desenhada satírica. Skeldar exige uma recompensa pelo uso do nome e Anderson coagido pelo seu contacto e acompanhado pelos amigos abandona o salão para se encontrar com ele. Concentrado em volta do ponto de encontro acertado ao telefone, o grupo é imediatamente atacado por um bando de guerrilheiros que conduz uma carrinha de gelados. O acidente não deixa feridos e dá-lhes oportunidade para acharem o diário de Skeldar, oculto numa papeleira, assim como uma enigmática granada encriptada que os renegados deixaram cair.
Assumam que o interior do salão é um fluido meta-estável, o que significa que tem a faculdade de conservar as suas propriedades físicas originais infinitamente até ser perturbado por qualquer reacção imprevista. Pensem na água meta-estável que se mantém líquida muitos graus abaixo do ponto de refrigeração até que um dos seus átomos toma acidentalmente uma posição diferente na formatura do conjunto e dá início a uma espécie de efeito de dominó que termina com a instantânea congelação do fluido. Neste exemplo, a chegada dos aviões militares ocupa o papel dessa mudança revolucionária e a partir daí tudo o que tem lugar no interior do salão é transformado: Max recebe o telefonema e emociona-se; alguns dos convidados quebram a imobilidade e levantam-se dos seus lugares para passear pelo recinto ou para falar com pessoas sentadas noutras mesas. A mudança introduzida foi tão violenta como um qualquer choque de partículas.
O enredo volta a complicar-se com a descoberta do diário de Skeldar e a granada. Mas porquê essa confusão? Por que motivo não pode Max esquecer o telefonema e retornar à cerimónia? É que a civilidade festiva para que foi convidado desapareceu. Na verdade, Max 2 desapareceu e quem nós iremos acompanhar daqui em diante é Max 3, que não está interessado em contactar Skeldar e só pensa em chegar a Sarajevo, inspirado pela imagem que se encontra gravada na superfície da granada. Vale a pena citar Philip Ball, que escreveu no seu livro Critical Mass: How One Thing Leads To Another:

A água nunca corre para cima e, em sentido figurado, nem o calor. Este argumento aparentemente inofensivo é o verdadeiro segredo que se esconde em cada mudança. Pois se existem processos irreversíveis, o tempo tem uma direcção precisa definida por esses mesmos processos. A Segunda Lei comunica com a nossa percepção de progresso que nos indica que o tempo avança e não recua.

Volto a citar Ball para comentar a crescente desordem vivida pelas personagens depois da saída do edifício:

A entropia aumenta num sistema quando ocorre qualquer mudança porque um agrupamento inédito das partículas constituintes é mais provável que uma repetição da formação anterior. Por outras palavras, o sentido seguido pelo tempo é determinado por probabilidades. Uma gota de tinta espalha-se na água porque é muito mais provável que os movimentos aleatórios das partículas que a constituem as afastem cada vez mais do seu ponto de origem, numa série de direcções diferentes, que conspirem no sentido de se condensarem numa esfera compacta que possa rolar até ao fundo ou encolher. Esta é uma contingência da existência de um grande número de probabilidades na mecânica de determinados processos. A entropia não aumenta para obedecer a um dogma cósmico: ela aumenta porque as probabilidades disso acontecer são impossíveis de numerar.

Então e a antropia? Por que razões indíviduos se comportam como átomos de tinta mergulhados em água? Simplesmente porque também se encontram imergidos em elementos alienígenas: os media, a cultura e, no caso das figuras públicas, a fama.
Todos estes novos e enérgicos elementos exercem acções de várias ordens nas nossas pessoalidades, influenciando movimentos e escolhas, prestigiando umas condutas em prejuízo de outras.

(Continua.)

Sobre Futebol

Como exprimi, a determinada altura, no meu álbum de banda desenhada A Última Grande Sala de Cinema, o futebol foi criado pelos chineses.
Faltavam dois séculos para Cristo (por suppositu) nascer, quando, sob o reinado da dinastia Tsin, foi criado na China um exercício para treinar soldados chamado Tsu Chu. Este nome significa, literalmente, jogar uma bola com os pés. Durante o período dominante da dinastia seguinte, a Han, o Tsu Chu também passou a ser praticado como folgança, em virtude de Liu Bang, o fundador dessa nova série de soberanos, ser um veemente admirador do jogo.

Não é intrigante que o futebol tenha sido inventado na China, porque os chineses possuem toda uma cultura de fetiche dirigida aos pés como objectos de desejo, de cobiça e de formosura. Assim como a prática dolorosa de apertar os pés das mulheres, desde a infância delas até à idade adulta, para que fiquem reduzidos a apêndices arredondados, também o futebol concentra neles as suas atenções, mas enquanto símbolos de vigor, de destreza; qualidades essencialmente masculinas, diametralmente opostas à posição que ocupam as virtudes que assistem ao exemplo prévio, pertencentes a um mundo recluso e feminino.
Yeh-hsien, a primeira encarnação da personagem Cinderela, surgiu na China; e a sua história, que cresceu em órbita da cena nuclear na qual o pé descalço é desvendado, brinca com características culturais chinesas: a nudez do pé, ostentando a fragilidade feminina, mas, de igual modo, convidando à investida sexual livre de sentimentos culposos, já que o sapato foi perdido por "acidente"; um mecanismo semelhante à fantasia de violação, em que a sexualidade feminina pode ser assumida sem vergonha pela mulher que a imagina, porque o comburente do desejo é exterior — logo ilibador.
Na tradição judaico-cristã, o pé aparece muitas vezes como símbolo para os órgãos genitais, como no Serafim que Isaías viu e que possuía seis asas: duas para lhe cobrir os pés (os genitais). Na cultura chinesa, as maneiras como os pés das mulheres e dos homens são observados contingenciam-se aos papéis sexuais e sociais de cada sexo. O pé feminino é uma criatura lunar, doméstica — de estimação —, apertada com faixas de pano e sapatos de reduzidas dimensões para que o crescimento não se cumpra: existe um desejo masculino de querer conservar a meninice na mulher, de purificá-la, transformando-a numa relíquia viva de uma idade pretérita — num bibelô. Em sentido contrário ao papel que está fixado para o pé masculino, que é solar, activo e robusto.
O pé é o suporte do corpo e através dele oferecemo-nos ao caminho (um caminho muito diferente, consoante os sexos); é a nossa identidade sobre a terra — a pegada é a primeira impressão digital — logo, os pés das mulheres e dos homens não podem deixar dúvidas a respeito das suas identidades.

Uma forma diferente de futebol, evoluída do Tsu Chu, que emigrou pelo continente asiático em direcção ao europeu, clandestino nas caravanas comerciais, foi introduzida pelos romanos na Grã-Bretanha, após a invasão desse território pelos exércitos de Júlio César: o Harpastum greco-romano; também ele um exercício militar com características lúdicas, jogado com os pés e com as mãos. Após o abandono dos colonizadores romanos e finado um intervalo de tempo de alguns séculos, os povos ditos celtas criaram a sua própria versão do jogo e no século VIII um proto-futebol, sem equipas, com um número de jogadores que poderia ir até um milhar de indíviduos, já se encontrava popularizado por toda a ilha. Famoso pela sua violência, esse futebol primitivo practicado pelos ingleses assemelhava-se mais a um combate anárquico que a um jogo e era desprezado pelas classes superiores como sendo uma actividade rural e bárbara. O desporto demorou bastante tempo a chegar às cidades e atravessou um período de proibição durante o reinado dos reis Eduardos para, em seguida, voltar a ser proibido por Oliver Cromwell, no século XVII, em conjunto com o teatro, as festas populares e o Natal. As origens do hooliganism traçam-se a partir desse vector que originou revoltas populares contra o puritanismo e distúrbios violentos associados à prática do futebol clandestino.

Não me interessa reproduzir aqui uma resenha histórica do futebol moderno, mas sim compreender as origens do jogo e descobrir onde reside o fascínio que sempre operou nos seus seguidores e apoiantes.
Penso que o segredo do sucesso do futebol passa, mesmo, pelos pés.
Existe algo de sedutor na habilidade de dominar uma bola, um objecto tão arisco, com algo tão inábil como um pé, de constituição rígida e cujos dedos não servem para manusear nada. É por esse motivo que o basquetebol nunca teve um sucesso tão grande quanto o futebol: por que, à superfície, é mais fácil. Podemos não pensar nisto de um modo objectivo, mas, implicitamente, esse raciocínio está no nosso subconsciente: se jogar uma bola com os pés enquanto se corre fosse fácil, o futebol nunca teria sido criado como um exercício de perícia militar... Quem observa o jogo experimenta um deslumbre quase infantil, diante da destreza do malabarismo - e malabarismo é a palavra correcta, porque um jogador é, sobretudo, um malabarista que precisa de aprender a realizar na perfeição uma série de truques, antes de se poder considerar um futebolista. O fascínio do futebol, neste sentido, é quasi-circense; juízo suportado pelas indumentárias e memorabilia das claques que suportam os clubes preferidos, pelo estádio em que o jogo tem lugar: um local que evoluíu do coliseu clássico — coliseu significa circo. É por isso que o futebol feminino nos parece uma brincadeira - uma levianice? Porque na nossa óptica falocrata, as mulheres não são tão hábeis quanto os homens?
Outrossim, mais factores se concentram para fortalecer o êxito do futebol: é um jogo com muitas regras, mas, em última análise, todas muito simples e de compreensão imediata. Trata-se de um confronto directo entre duas equipas, o que permite uma clara situação de Us vs Them, na qual os clubes funcionam à guisa de exércitos defensores da honra de um bairro, de uma cidade ou de um país. Por se ter tornado tão popular consiste numa modalidade desportiva que possui uma máquina promocional desmedida e que, exponencialmente, aumenta ainda mais a já existente popularidade do jogo (sem mencionar o facto de os clubes se terem transformado em sociedades anónimas, elevando os desafios a autênticas guerras corporativas).

(The Scapegoat, de William Holman Hunt. 1854.)

Existe, ainda, a figura do árbitro como agente (à partida) neutro que conduz o desafio de futebol e cuida da acertada aplicação das regras — o que se trata de uma ilusão, porque o árbitro não é ubíquo e só lá está para servir de bode do Yom Kipur, sobre o qual os adeptos podem colocar o peso da derrota. É o árbitro que torna a derrota suportável, por vezes contribuindo de maneira preponderante para que ela ocorra - como se não quisesse desapontar ninguém. E ainda bem! É que se essa figura estivesse ausente, os jogadores derrotados seriam atacados desapiedadamente pelos espectadores.


quarta-feira, 25 de março de 2009

Work in progress

Mucha, o meu novo álbum de banda desenhada está escrito e o argumento já foi entregue ao desenhador, o talentoso Osvaldo Medina. Estou bastante entusiasmado com esta pequena história de horror que será editada pela Kingpin Books. Deve estar impresso a tempo de ser apresentado no próximo Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Depois digo-vos.

Estou a escrever o meu novo romance, que já tem título (mas é cedíssimo para o revelar), e a pesquisa avolumou imenso; mas as coisas são mesmo assim: comecei por querer falar num determinado assunto e vou ter de escrever sobre uma data de coisas. A sua narrativa está toda delineada com pormenor maníaco e vou tentar terminá-lo este ano, mas como se trata de uma história muito grande, e com muitas camadas, não tenho a certeza se isso será possível. O tom é diferente dos livros anteriores, mas o espírito é semelhante, contudo. Se gostaram desses, vão adorar este (espero).
Daqui a uns tempos, prometo publicar um excerto: fiquem atentos.

terça-feira, 24 de março de 2009

Entrar a matar

Shanna, the She-Devil é uma banda desenhada que comunica, sem intermediários, e de modo pungente, com a massa diencefálica. O revamp que o desenhador Frank Cho criou para esta personagem da Marvel Comics, imaginada pelos argumentistas Carole Seuling e Steve Gerber e desenhada pelo artista Greg Tuska, no início da década de setenta, não se assemelha em nada com o modelo original. A personagem Shanna O'Hara Plunder era uma veterinária, filha do dono de uma mina africana de diamantes, que decide combater os caçadores furtivos; ora, a Shanna de Cho é a única sobrevivente de uma série de clones produzidos pelos geneticistas do III Reich: espécie de Eva nazi, programada para ser uma máquina de matar. E ainda bem que sabe como quebrar pescoços, porque o mundo dela encontra-se infestado por uma macrofauna com muito mau-feitio.

O livro vale pela arte de Cho, já que o argumento é muitíssismo linear (apesar de não escorregar para o boçal, o que, numa história deste género, é uma vantagem): Shanna é descoberta, e libertada, por um grupo de soldados norte-americanos; e após estes ficarem infectados por uma arma biológica desenvolvida pelos nazis, ela tem de os ajudar a encontrar um antídoto, escondido num bunker perdido no meio da selva. Este é o ponto de partida para uma série de sequências de acção de grande fôlego, nas quais vemos a nossa valquíria à bordoada com tiranossauros e velociraptores. Acreditem que a arte de Frank Cho é surpreendente e bastante imaginativa.
Shanna, the She-Devil deveria ter saído pela imprint MAX, cujos conteúdos se dirigem a leitores maduros, mas foi a versão censurada que acabou por ser impressa e editada. Ou seja, a nudez de Shanna foi velada, mas não as centenas de litros de sangue e tripas que se desenrolam em catadupa pelas páginas.

Este livro é o que é e nada mais que isso: uma aventura honesta, na qual aquilo que interessa é ver a Shanna à porrada com dinossauros - obra híbrida de fita de Leni Riefenstahl com Jurassic Park. Vale a pena? Bastante: é grotesco, está muito bem desenhado e as sequências de acção são do outro mundo. Gostava de ver uma aventura da Shanna escrita por um argumentista mais sofisticado, porque existe, aqui e ali, nas atitudes e gestos dessa personagem, uma inesperada sensibilidade que merecia ser tratada de outra maneira.

(Capa do primeiro número da série original de Shanna, the She-Devil, desenhada pelo grande Jim Steranko.)

Poe integral

Amanhã, às 18H30, estarei no fórum da loja FNAC do Chiado para, em conjunto com Helena Barbas, apresentar o livro Obra Poética Completa de Edgar Allan Poe, que reúne num só volume todos os poemas que o praecursore do "gótico americano" nos deixou. Com tradução de Margarida Vale de Gato e ilustrações de Filipe Abranches, esta é uma edição da tinta-da-china.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O novo do Pynchon

Um dos meus escritores preferidos (correcção: um dos escritores que escreve alguns dos meus livros preferidos) vai publicar um novo romance este ano. O primeiro chama-se Thomas Pynchon e o segundo intitula-se Inherent Vice. Parece que é uma história com surfistas - mas estou a falar de um livro de Thomas Pynchon, por isso essa premissa é equivalente a dizer-se que a vida na Terra é apenas uma coisa esquisita baseada no carbono. Como sempre achei que a vida e os livros do Pynchon são alótropos, talvez possa sugerir que Deus criou a inteligência para este escritor e depois raspou o tacho para distribuir o que sobrou pela remanescente humanidade. É um pensamento consolador, porque, assim, a estupidez deixa de ser um defeito inato para se transformar numa contingência da primordial má gestão divina de recursos.

Seja como for, já tirei a senha e estou na bicha. A quem me passar à frente, amaldiçoo-o com um emaranhamento quântico com o Evil Halfwit.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Sobre Poe e sobre outras coisas

Na próxima quarta-feira, às 17H00, vou participar num debate sobre a obra e a vida de Edgar Allan Poe, que terá lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em conjunto com Hélia Correia, José Luís Peixoto, Pedro Mexia e Luís Filipe Silva.
Esta tertúlia insere-se no programa integral do evento Poe and Gothic Creativity, a decorrer entre os dias 18 e 20 deste mês. Consultem a programação para ficarem a saber quais são as restantes palestras e actividades que poderão assistir.

Estou a escrever uma nova banda desenhada que será publicada este ano pela Kingpin Books. O desenhador será o fabuloso Osvaldo Medina, ilustrador do eye candy que é o álbum A Fórmula da Felicidade. Escrito por Nuno Duarte, o segundo volume deste título também será editado este ano. Quero escrever sobre ele, aqui nos Cadernos de Daath (assim como quero escrever sobre outros livros que me ofereceram nas últimas calendas). A ver se tenho tempo, porque todos eles merecem ser falados -nenhum está esquecido.

A minha nova banda desenhada, que consistirá num comic book ágil, intenso e despudorado, intitula-se Mucha e será uma história madura de horror. Não é o meu regresso à BD porque, desde a publicação de A Última Grande Sala de Cinema (premiado com uma bolsa de criação literária do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas) até agora, já escrevi diversas coisas (como esta), mas, com efeito, é o regresso em álbum. Estou muito entusiasmado. Prometo-vos emoções fortes...

quarta-feira, 11 de março de 2009

Uma espécie nova?

Sou o primeiro a admitir que, muitas vezes, sou atraiçoado pelo meu solipsismo; isso costuma acontecer, por exemplo, quando fico estupefacto cada vez que encontro algo que me era estranho, mas que, aparentemente, todos os cães e gatos conheciam. E cães e gatos não são criaturas inocentes; pelo menos, os gatos. Eu explico.

Ontem precisei de ir à minha Junta de Freguesia. Enquanto esperava por ser atendido, tive o privilégio de ler um cartaz que lá estava afixado e que anunciava o preçário das diversas licenças a adquirir para todas as espécies de animais de estimação. Bom, todas, todas, não. Só para canídeos e... gatídeos!...
Ainda pensei que estivesse a ler mal, mas depressa dei conta que a palavra existia e não só estava à minha frente como pertencia ao léxico vulgar, podendo ser encontrada numa miríade de documentação institucional sobre tarecos. Porém, a minha dúvida persistiu: mas que raio é um gatídeo?!..., fui eu a pensar a caminho de casa. Se os cães pertencem à família dos canídeos, os gatos pertencem à família dos felídeos. Da família dos gatídeos é que eu nunca tinha ouvido falar.

O sufixo ídeo provém do étimo grego eidos que se traduz por similar. Nesse caso, um "gatídeo" poderá querer significar "semelhante a gato"?!... Engenhoso, não haja dúvida, mas, se era para isso, já existe a palavra felídeo que significa semelhante a felino; sendo que felino tem origem no nome latino feles que quer dizer gato. É que as coisas são mesmo assim: no que diz respeito à terminologia científica, a base de todos os nomes é a língua grega. Isto quer dizer duas coisas: 1) na maioria das vezes não é preciso inventar nada, porque já foi tudo inventado, há bastante tempo, e 2) quando é preciso classificar e nominar novas espécies é preciso ler a gramática com muitíssima atenção.

Se eu quisesse baptizar a família do híbrido que ilustra esta argumentação o mais indicado poderia ser algo como jocusidae. Mas quê? Agora teria de se atender à etimologia para criar nomenclaturas? Até o Diabo se ria! Neste caso, basta saber o nome vulgar da bicharada e carregar o mosquete pela boca: se um cão é canídeo e um gato é gatídeo, então um periquito passa a ser um periquitídeo, um ornitorrinco passa a ser um ornitorrinquitídeo e uma sardinha passa a ser uma sardinhídea. É tão simples, não é? Deve ter sido assim que raciocinou o glossólogo que se lembrou de criar o neologismo gatídeo: «Se cão é canídeo, então gato é gatídeo, pronto. O que interessa é que tenha o ídeo lá pelo meio.»

segunda-feira, 9 de março de 2009

Who (wants to) watch the Watchmen (film)?

Fui ver a adaptação cinematográfica do álbum de banda desenhada Watchmen, escrito por Alan Moore e desenhado por Dave Gibbons, que estreou na passada quinta-feira, e gostei. Vou esperar que a versão de três horas e meia saia em DVD para rever o filme, com as inclusões dos desenhos animados Tales of the Black Freighter (a história de pirataria que, no livro, é contada em paralelo à narrativa principal) e da morte de Hollis Mason (o primeiro Nite Owl). Porém, considero que esta versão comercial de Watchmen, o filme, consegue passar muito bem sem essas adições; não só consiste numa boa adaptação como acaba por ser um filme sintonizado de modo perfeito com o espírito deste tempo.

Não me tentem impingir as tretas do costume: eu conheço o álbum de banda desenhada Watchmen de trás para a frente e já o li e reli dezenas de vezes (até comecei a traduzi-lo para português para a editora Devir quando ela manifestou interesse em o publicar, há uns anos, na altura em que o mercado de edição de BD em Portugal vivia o seu último momento de vacas gordas). Por conseguinte, estou mais que à vontade para dizer que a adaptação para cinema, realizada por Zack Snyder, mesmo não sendo perfeita, é excelente.
Não me interpretem mal: não acho, de forma alguma, que os filmes sejam o apex dos formatos artísticos (a minha opinião anda muitíssimo longe disso, até...), mas, já que falamos de um filme - deste filme -, então que se faça justiça e diga-se, à boca cheia, que kicks ass: o casting é correctíssimo (actores a sério e não carinhas larocas), os diálogos são decalcados verbatim das páginas do livro (assim como a maioria do storyboard), o ritmo é trepidante e, melhor que tudo, o espectador não é tratado como um atrasado mental. O que é que se pode pedir mais? Que o final fosse uma réplica exacta do original? Eu, que li por acidente uma sinopse detalhadíssima num site sobre o filme, antes da estreia, entrei cheio de reservas na sala de cinema e sai convencido: o novo final funciona (ainda bem). Trata-se, sobretudo, de um update e não de uma tentativa de upgrade. Existem outras (pouquíssimas) mudanças, perfeitamente justificadas quando se pensa que, desde que o álbum de banda desenhada foi publicado até agora, já se fizeram milhares de filmes e que algumas coisas que foram inovadoras na BD já foram, infelizmente, exploradas ad nauseum da pior maneira em veículos cinemáticos. Nesse sentido, Snyder e os seus argumentistas souberam evitar repetições. Parabéns!

Desviando-me do filme, por uns momentos, o que tenho a dizer sobre alguns comentários de índole arrogante e que, associados a esta obra (e outras do mesmo calibre), se fazem ler e ouvir, um pouco por todo o lado, e procuram dar a entender que é seguro (para os detractores da linguagem da banda desenhada) gostar de Watchmen porque, à superfície, apresenta uma sofisticação incomum na área da BD, é o seguinte: essa espécie de comentários revela várias coisas, entre as quais ignorância no que à leitura de banda desenhada diz respeito. É que não só existem carradas de títulos que são capazes de competir com este álbum em maturidade de conteúdos, como aquilo que faz de Watchmen um livro tão especial é que ele consiste, desavergonhadamente, numa história de super-heróis!... É graças a esse desiderato que, habilmente, consegue transcender-se e pressionar em vários botões ao mesmo tempo. Ou seja, não é nenhum "romance gráfico" alegórico que, numa lógica quasi-dadaística, usa o lixo que é a BD para alcançar propósitos literários mais elevados (para quem está fora do círculo da BD é quase impossível compreender a carga negativa que vem associada ao conceito de "romance gráfico", mas prometo escrever sobre isto um dia destes): é um álbum de banda desenhada, ponto. Só se surpreendem os leitores que não conhecem mais banda desenhada nenhuma...

Um exemplo ainda mais perfeito dessa premissa de contenção, à priori, são os primeiros dez números que Alan Moore escreveu para a personagem Marvelman (desenhados por Gary Leach e Alan Davis): numa perspectiva de preferência pessoal, considero que possuem ideias de uma subtileza que está ausente em Watchmen (as primeiras páginas do primeiro número são de arrepiar a espinha, assim como a revelação final do plano do arqui-inimigo da personagem principal). A série Marvelman de Moore foi, posteriormente, retomada por Neil Gaiman e Mark Buckingham.

Em suma: Watchmen é o livro gigante que é porque se trata de uma história de super-heróis, pura e dura. Como todas as obras genuínas é um livro que só se preocupa consigo próprio: em nos falar de Nite Owl, de Rorschach, de Dr. Manatthan - as interpretações posteriores, boas ou más, pertencem a quem as pensam. Aqueles que elevam Watchmen aos píncaros (se calhar sem o ter lido, muitas vezes...) e desdenham, na generalidade, a linguagem da banda desenhada, não se dando sequer ao trabalho de aprender a gostar dela, são bem capazes de dizer cobras e lagartos do filme de Snyder. Diriam sempre, mesmo sem o ver. Agora... Aqueles que são fãs do álbum Watchmen, que são fãs de banda desenhada, que conhecem a obra integral de Moore e de outros autores igualmente importantes, vão gostar bastante do filme.

(Alan Moore.)

(Dave Gibbons.)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Back to school (com Pessoa e Poe)

Ontem fui à Escola Secundária Augusto Cabrita, no Barreiro, para falar a alunos e professores sobre o meu romance A Conspiração dos Antepassados.
Descobrir o modo como receberam o livro foi muito interessante, assim como perceber que, com efeito, se trata de um título que lhes diz bastante - a vários níveis. Foi recompensador sentir tanto entusiasmo. Agradeço à docente Natália Nunes, professora de português que me convidou, como à aluna Ana Sofia que realizou uma bem documentada apresentação, prévia à minha exposição, e que muito gostei de assistir.

Daqui a uns dias, vou regressar à escola, mais uma vez, para participar num colóquio sobre o autor Edgar Allan Poe, no âmbito do evento Poe e a Criatividade Gótica, que terá lugar entre os dias 18 e 20 deste mês na Universidade de Lisboa. Consultem a programação para ficarem a saber quais as palestras e intervenções, organizadas em órbita da obra desse autor norte-americano, em que poderão estar presentes.
Eu participarei num debate a ocorrer no dia 18, às 17H30, na Faculdade de Letras, juntamente com os escritores Hélia Correia, José Luís Peixoto, Pedro Mexia e Luís Filipe Silva.
Esta celebração do bicentenário do nascimento de Edgar Allan Poe é organizada pelo Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa (CEAUL/ULICES).