quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A propósito de "O Homem do Castelo Alto"

A propósito da notícia da publicação de O Homem do Castelo Alto de Philip K. Dick, pela Saída de Emergência, vale a pena reflectir sobre os caminhos alternativos que a história ocidental poderia ter tomado se, em momentos de charneira, as circunstâncias tivessem sido diferentes das factuais. Neste romance de Philip K. Dick, as forças do Eixo ganham às dos Aliados, imprimindo um inédito planisfério no qual, após a Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos foram esquartejados e partilhados entre a Alemanha e o Japão imperiais.
Vale a pena, pois, falar sobre outro Philip: Philip Ball, autor de Critical Mass: How One Thing Leads to Another (Farrar, Straus & Giroux, 2004). Neste livro de divulgação científica sobre a aplicação da física ao estudo das dinâmicas sociais, Ball parte de uma visão mecanicista do mundo, inaugurada por Thomas Hobbes em Leviathan, e atravessa, entre outros campos, os estudos estatísticos do astrónomo belga Adolphe Quetelet e as ciências económicas desenvolvidas por Adam Smith sempre estabelecendo analogias entre fenómenos físicos e o comportamento das populações, no sentido de se construir uma «física da sociedade». Embora as intenções do autor não se encontrem despoluídas de alguma temeridade, vale muito a pena falar sobre um exemplo intrigante que ele desenvolve no Capítulo 12 (Join The Club — Aliances in Business and Politics) e que endereça a previsão de cenários históricos possíveis. Um exemplo que nos diz respeito, enquanto portugueses.
Substituindo densidade e pressão por ano e configurações, dois investigadores da universidade do Michigan usaram um programa utilizado para testar o comportamento de moléculas gasosas para prever as possíveis alianças entre países europeus durante a Segunda Grande Guerra e concluíram que poderiam ter acontecido dois cenários.
Craig Reynolds já realizara algo parecido quando estudou o comportamento de bandos de pássaros em voo, usando um programa de computador semelhante: os seus Boids, neologismo criado com o recurso aos nomes bird e android, simulam na perfeição os movimentos de um bando de pássaros e são capazes de tomar decisões baseadas em apenas três configurações, 1) voar à mesma velocidade do pássaro (ou do agente, no caso do próprio software) mais próximo, 2) manter a proximidade e 3) evitar colisões. Os morcegos virtuais que podemos observar no filme Batman Returns, de Tim Burton, assim como diferentes criaturas de outros filmes, foram desenvolvidas com o recurso a este programa. Pensem no ainda mais perfeito Massive, concebido por Stephen Regelous para a Weta Digital como uma ferramenta que pudesse criar os exércitos dos filmes que compõem a trilogia The Lord of the Rings de Peter Jackson, e podem imaginar o grau de complexidade que o comportamento desta espécie de indivíduos virtuais pode assumir.
As configurações escolhidas para pautar o comportamento dos dezassete países europeus que integraram a experiência foram as suas religiões e disputas territoriais, identidades nacionais e culturais, economias e histórias. Com base nestas informações, o software mostrou que poderia, de facto, existir um conflito entre dois conjuntos de países arrumados desta forma: o do Eixo (do lado de Hitler) e o dos Aliados (ao lado da França e dos Estados Unidos). Só que nesses conjuntos alternativos, Portugal faz parte do Eixo. Surpreendentemente, Ball diz-nos que o facto de Portugal ter sido escolhido pelo programa para fazer parte do Eixo é uma anomalia, pois éramos parceiros da Inglaterra, o que, só por si, nos colocaria do lado dos Aliados e nos excluiria da amostra de nações neutras, como a Suíça e a Suécia (pág. 286). Ao que parece, a simpatia que o Estado Novo sentia pelo regime alemão não passou despercebida pelo programa, que, repito, analisou um número generoso de características importantes para chegar a esse resultado. O estudo destas análises históricas contra-factuais é ainda o assunto de um livro curioso que vale a pena ler: Virtual History: Alternatives and Counterfactuals, editado pelo historiador Niall Fergusson (Basic Books, 2000) e que contém dois capítulos que poderiam ser satélites de O Homem no Castelo Alto. São eles Hitler's England: What if Germany Had Invaded Britain in May 1940? de Andrew Roberts e Niall Fergusson e Nazi Europe: What if Nazi Germany Had Defeated the Soviet Union? de Michael Burleigh (págs. 281-347).
A segunda conclusão da experiência relatada por Ball foi a de que outro conflito, desta vez com catorze países associados contra a União Soviética, a Grécia e a Jugoslávia, poderia ter irrompido em 1936. Ball acredita que estes modelos podem ser uma ferramenta importante para clarificar situações futuras: «But the model might be of greatest value looking forward. What can it teach us to expect of relations in the volatile Middle East, where for example Israel, Syria, Iran and Jordan are locked into a frustrated mutual antipathy? Might religious similarities and fear of Western interference outweigh political differences in creating an alliance of Islamic states? Where would that leave Turkey?» (pág. 293).
Todavia, não existem modelos perfeitos; sobretudo se forem produzidos por um programa de computador que aponta cenários possíveis — lógicos, seria mais correcto — suportados por apenas seis ou sete ou quinze configurações. Em oposição aos pássaros que Reynolds estudou com os Boids, os seres humanos geralmente não agem de forma lógica e os seus comportamentos podem tomar contornos imprevisíveis. Nada garante que duas nações inimigas não venham a reconciliar-se no futuro para combater um inimigo comum com maior poder de fogo; ou que um país aparentemente amistoso não declare de surpresa guerra a um país vizinho, iniciando uma catástrofe a grande escala.


Esta espécie de simulações são fascinantes, e até oferecem ocasião para se passar o pano na gordura que ofusca a bola de cristal, mas não dispõem de autoridade —falta-lhes precisão para, se possível, diagnosticar o futuro de forma científica. Consistem, somente, em exercícios; nos quais se projectam as premissas da Psycohistory: ciência fictícia envisionada por Isaac Asimov, no primeiro volume da sua série de ficção científica Foundation. Nessa história, o psico-historiador Hari Seldon descobre que, daí a 500 anos, uma nova idade das Trevas irá ensombrar a raça humana e tem a ideia de salvar todo o conhecimento num empreendimento gigantesco: a Encyclopedia Galactica. Ora, o tipo de modelos que Ball nos apresenta serão mais úteis se forem utilizados para regressar ao passado e desfiar outras hipóteses dos novelos de informações que já estão arrumados no cesto.
Talvez seja wishfull thinking, mas acredito que podemos aprender muito com essas hipóteses não-nascidas e compreender por quais motivos a história tomou um determinado rumo em prejuízo de outro.