quarta-feira, 23 de março de 2011

Velha Rua Nova de Lisboa


Dois quadros apresentados ao público, em Novembro do ano passado, na exposição Marfins Cingaleses do Século XVI, no Museu Rietberg de Zurique, na Suíça, e disponibilizados pela curadora Ruth E. Bubb, da Sociedade de Antiquários de Londres, mostram visões da nossa Rua Nova pré-pombalina.
A similitude com o registo que António D'Ollanda (pai de Francisco D'Ollanda) nos deixou no quinhentista Livro de Horas de D. Manuel I, na iluminura de uma procissão fúnebre que ilustra um Ofício de Defuntos, é muito grande; em especial os característicos edifícios altos com as suas distintivas arcadas. Não é fácil contextualizar a tela que reproduzo acima, mas, atentando à profusão de sacerdotes inacianos, avanço com a hipótese de que é uma representação da Rua Nova em meados do século XVII ou nas primeiras décadas do século XVIII. O nosso século XVII foi tenebroso, social e culturalmente: um vazio de ideias e progressos, em contraste brutal com o que se passava ao mesmo tempo no resto da Europa e, também, em total oposição com os melhores anos do reinado manuelino.

Os quadros, que se encontravam numa casa senhorial inglesa, apresentam - para minha satisfação - imagens de Lisboa que vão ao encontro das descrições que se podem ler nos meus romances Lisboa Triunfante (2008) e O Evangelho do Enforcado (2010).

«Miranda sentia-se tão forasteiro como as negras que vendiam favas, camarões e chicharros cozidos e fritos pelas ruas, como os negros que andavam pela cidade com brochas e baldes de cal às costas ou como os mouros das galés. É que a "cidade das sete colinas" não se parecia nada com o resto do país; nem sequer com Coimbra que também era uma cidade grande. Portugal ajeitava-se num espaço peninsular exíguo em pequenos aglomerados de gente, mas Lisboa era gigantesca; um enxurro de todo o tipo de pessoas.
As casas de pedra preta do irregular centro gótico contrastavam com as moradias de três andares da Rua Nova dos Mercadores e da Rua Nova dos Ferros todas pintadas de azul, vermelho e amarelo; os vários arcos e portas da cidade possuíam santos, estátuas e brasões pintados de cores vivas. (...) Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas àquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia dos comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue - era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam às costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado.»
(in A Lição de Arquitectura. Lisboa Triunfante.)

«A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada, pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério. O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel - e tão dourada quanto ele. Acho que... que vou passar na Rua Nova.
Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo - sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e o regedor.
Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.
Pôs-se de frente para o sítio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.»
(in Espadas: Surgite ad Judicium. O Evangelho do Enforcado.)