terça-feira, 21 de junho de 2011

Cidade é Natureza

O facto de que existem pouquíssimos fósseis de hominídeos idosos e de meia-idade deveria ser uma pista para a maioria dos indivíduos calcular que a vida do campo está muito longe de ser o estado ideal da nossa espécie. Não é à toa que o reality show que coloca um grupo de pessoas no meio do mato para os espectadores verem como elas se comportam se chama Survivor. Até nas nossas cidades contemporâneas se pode morrer de frio ou de calor, em poucas horas, se, por uma razão ou outra, dermos connosco desprotegidos face ao clima das estações. O mundo é um local que coloca todas as criaturas à beira do perigo ou da morte a todos os instantes e, desde que a vida germinou, extinguiu 99,9% de todas as espécies que o povoaram. O mundo não é a maternal biosfera que o pensamento romântico contemporâneo nos quer fazer acreditar que é: é, apenas, um habitat - hostil, cheio de doenças, predadores e parasitas. Com efeito, o habitat natural - ideal - do homo sapiens sapiens - aquele em que, de facto, ele (nós) se desenvolveu e teve capacidade de delinear estratégias de sobrevivência, como a agricultura e a escrita - é a cidade.

Enquanto espécie, não nos podemos desentrelaçar da cidade (e das suas versões beta, claro - a aldeia e a vila).

Por isso é com alguma estupefacção que vejo aquilo que só posso apelidar de beato deslumbramento diante da terceira edição do evento Mega Piquenique Modelo que teve lugar no centro de Lisboa, e que transformou a Avenida de Liberdade numa quinta, com animais, legumes e frutos. A iniciativa, em si, não me aquece, nem arrefece, mas penso que, de modo indirecto, fortalece uma ideia popular, e errada, de que a cidade é intrinsecamente imoral, enquanto que o campo, por estar mais perto de uma concepção "disneyesca" da Natureza, é profundamente moral - e o estado dourado que perdemos com a queda citadina da graça. Qualquer indivíduo que seja um leitor mediano de História é capaz de perceber o quanto essa criação provinciana está errada. Não só o nosso habitat natural é a cidade, como sem ela não seríamos capazes de viver: desde que nos erguemos para caminhar em marcha bípede, e aprendemos a usar ferramentas, que modificamos o mundo à nossa volta para garantir a nossa sobrevivência e isso, na verdade, não é nenhuma desgraça, mas o comportamento natural da nossa espécie. A cidade é uma das nossas estratégias mais antigas - e aquela que, ao contrário do campo, nos deu mais frutos.

Até a agricultura biológica, que é servida hoje nos meios de comunicação como panaceia para os diabolismos do mundo industrializado, é um mito: a agricultura é, sempre foi e sempre será artificial.

Nenhumas das espécies vegetais cultivadas pelo homem se assemelham minimamente às versões selvagens das quais descendem e foram transformadas por tentativa e erro pelos nossos primitivos antepassados de maneira a darem mais grãos, mais frutos e medrarem em solos desnutridos. Na realidade, nenhum cereal da nossa dieta é capaz de sobreviver sem a mão humana - e nenhuma espécie de cereal contemporânea, consumida hoje (seja trigo, milho ou arroz), tem mais de sessenta ou setenta anos: são versões desenvolvidas por cruzamentos genéticos, inventadas em laboratório para serem mais férteis, mais rentáveis, mais adaptáveis a condições adversas e, também, mais nutritivas. Sem o processo Haber-Bosch, inventado em meados do primeiro decénio do século passado, e usado para criar os constituintes essenciais aos fertilizantes contemporâneos, como nitrogénio e sais amoniacais, não haveria agricultura - "biológica" ou outra!... - que sustentasse a nossa população, já que são esses fertilizantes que permitem rentabilizar o espaço cultivado: menos espaço que dá mais colheitas por ano. Se revertêssemos para a agricultura "biológica" (primitiva) precisaríamos do dobro ou do triplo do espaço para colher as mesmas quantidades - e isso, sim, é que seria uma ameaça para as áreas florestais e para as espécies animais que nelas habitam.

A cidade é Natureza: é tão natural quanto uma floresta, porque o homem é uma criatura natural. É, também, tal como a própria Natureza, algo que continua a evoluir. Precisamos de optimizar ainda mais as nossas cidades, que são o nosso repositório de memórias, de cultura. Mas isso não se fará revertendo a cidade para um Ilídio rural, para uma eutopia pastoril, sem carros e sem habitantes, que nunca existiu a não ser nos produtos de entretenimento.