quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Morte de Fernando Pessoa


Recordando Fernando Pessoa, no dia da sua morte, com um excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007). Neste trecho, Pessoa morre.
Às vezes, é a única forma de continuar a Viver.

«1935

Tudo o que é humano é divino, pensou Pessoa, sentindo a morte a entrar-lhe no quarto do Hospital de São Luís dos Franceses naquele final de tarde; fresca, salgada, de pele torrada pelo Sol como Talassa, a Mãe d’Água primordial, ela olhou-o com ternura e deixou-se ficar serena – sereia – aos pés da cama: ainda não era a Hora. A morte, reflectiu, só mete medo se a olharmos com olhos de medo. Estou calmo e ela é linda. Era a primeira visita do dia, desde a do cunhado na manhã anterior; a irmã, também acamada, com uma perna fracturada, não tinha podido vir.
Porque motivo se sentia tão sossegado na presença da morte? Ia morrer sem ter publicado o grande livro que intentara dar à estampa, até ao final do Verão: faleceria órfão de letras, avarento com uma arca cheia de manuscritos erráticos, amontoados como roupas usadas; alguns dentro de envelopes, amarrados às dezenas com cordéis. Tossiu e escarrou, para dentro da boca, uma bola de expectoração que lhe soube a bílis; engoliu-a.
Guardava na alma a imagem ideal dessa Grande Obra que nunca publicara e achava-se como um desses mal-casados que andam infelizes pelo mundo; que guardam as imagens subtis das mulheres e homens desejados – imagens sublimes que não se realizaram. Até era um pouco maçadora aquela tragédia toda de ir morrer.
Calculou que seria indicado lembrar pessoas e coisas que conhecera, para cunhar a morte com um carácter mais ortodoxo. Havia a mãezinha e o pai, este já demasiado vago para ter rosto. Os irmãos, o tio Roza que também havia sido poeta, a Teca, o Chico e os meninos. A avó Dionísia, mais louca que o Ângelo de Lima… Coitado do Lima!... Que grupo de bons malandros tinha sido aquele do Orpheu: como estava tão diferente do Pessoa desses anos. Agora sabia como era fácil um Messias roubar a liberdade do seu povo: ia fazer no dia seguinte um mês desde que decidira não publicar mais nada em Portugal como protesto pela censura coagida pelo Estado Novo – todas as obras censuradas são ridículas!
Certamente que o Ferro o tinha ajudado a ganhar o prémio da Segunda Categoria daquele maldito concurso literário com a Mensagem, porque depois da carta que publicara no jornal a favor da Maçonaria tornara público o rompimento com o salazarismo. Sim, agora pensava de um modo muito diferente do Pessoa que escrevera o Interregno
A Mensagem!...
O conjunto de poemas que baptizara de Portugal: mudara de título por causa dele!
Ele! O mago diabólico.
Ainda era vivo, mas os jornais já não falavam nele.
Pessoa costumava ir ao Café da Arcada para se encontrar com Ferreira Gomes e beber aguardente; às vezes, puxava esse assunto apenas para ver o rosto ingénuo do amigo derreter numa careta desconsolada. O Cirilof, a quem finalmente prefaciara a tão adiada edição de Alma Errante com um pequeno ensaio sobre a ordem rosicrúcia, cortara o cabelo e a barba: quando Pessoa o viu assim pela primeira vez pensou que se tinha enganado na porta. O livreiro passava os dias a falar de política e continuava a achar que o António Ribeiro iria transformá-lo numa estrela de cinema. A relação já não era a mesma e Pessoa, voltando sozinho para Campo de Ourique, com as mãos nos bolsos onde trazia – sempre – o anel de prata deformado, só queria chegar depressa a casa para se sentar a escrever.
Os novos escritores e artistas que ia conhecendo nos cafés e no Abel olhavam-no como um antepassado de estimação: o velhinho que se ria alto, cuja mão tremia ao agarrar a caneta e o copo; uma vez, enquanto conversava com o Almada, até se escondera debaixo da mesa durante uma trovoada. Não era culpa deles se não o levavam a sério, mas que podia fazer? Não gostava daquele mundo, daquela cidade, daquela gente de sorriso pateta que via nas ruas: se achassem que era um Puro Tolo, tanto melhor. O que é que lhes preenchia as cabeças? Mais ninguém se interessava por magia. Ninguém parecia ter imaginação naqueles dias em que nada podia estar acima da Nação. Nem sequer o Homem.
Era por essa razão que a simples menção de Crowley numa conversa murchava as atenções dos ouvintes. Ninguém queria falar de Crowley, ninguém queria falar sobre a Besta: ninguém queria falar sobre aquele que não substituíra os sonhos por comodidades e subira mais alto que todos; daquele que metera medo a toda a gente com o riso satânico – o riso que, bem vistas as coisas, só metia medo àqueles que tinham pavor de viver. Sim, ninguém queria falar sobre ele, porque, ao fazê-lo, reconheciam que não tinham sido bons o suficiente, corajosos o suficiente, loucos o suficiente. Mas Pessoa lembrava-se! E não o esquecera.

Considerei, realmente, a chegada da sua poesia como uma verdadeira MENSAGEM, que gostaria de explicar pessoalmente.

Uma verdadeira Mensagem!
Crowley mostrara-lhe, sem dar conta, como ele gostaria que a sua poesia fosse lembrada no futuro. Lembrou-se do mago, lembrou-se do amigo.

Senhor Pessoa. Que raio de ideia foi a sua
de me mandar o nevoeiro lá para cima?

Sorriu, e a morte sorriu também. Compreendeu porque é que ia morrer sossegado: tinha vivido uma vida mágica e quem vive uma vida mágica sabe que não há morte, apenas um alçapão por onde o corpo desaparece para ir para outro lugar; como no palco de um ilusionista.
Sentiu curiosidade em saber como a sua obra literária seria lida após a morte; se, com efeito, conseguiria deixar um legado nas letras, na cultura do Portugal que tanto amava. Olhou para a mesa-de-cabeceira e viu o bloco de apontamentos ao lado de uma das velas de Abramelin que Crowley lhe oferecera antes de ir para a Alemanha: uma das velas usadas no ritual realizado na Boca do Inferno.
Agarrou o bloco e sentou-se na cama, encostado à almofada. Sentiu-se maldisposto e com vontade de vomitar; os braços tremiam-lhe e apenas com muito esforço conseguiu manter-se equilibrado a olhar para o papel. Aproximou o bico do lápis da folha e pensou na frase que iria escrever para a transformar em sigilo como Crowley lhe havia ensinado. A cama rangeu, ameaçando partir-se; um pássaro que chilreou no pátio demonstrou-lhe que o mundo continuava a girar sem lhe dar importância.
Que frase iria escrever?
Lembrou-se de perguntar: O que é que o Amanhã me irá trazer? Encostou o lápis à folha e, agarrando-o com força, preparou-se para redigir a frase. A mão tremeu-lhe; a visão desfocou-se. Não tinha força e interrompeu a acção, fitando os pés da cama e convergindo o olhar em algo invisível. Compreendeu que, no fundo, ele recusava-se a querer saber o futuro.
E se viesse a saber que a sua obra cairia no esquecimento, que tudo aquilo que escrevera fora em vão? Seria demasiado cruel descobrir que todos os sacrifícios que fizera para se dedicar à escrita haviam sido nulos e que nada perduraria. Não precisava de saber nem o bom nem o mau: ia morrer, era uma parvoíce; um último resquício de presunção, de egomania artística. A obra teria de vencer sozinha.
Sacudiu os ombros e gemeu: era uma pergunta pateta, de qualquer das formas. Limitou-se a escrever, em inglês:

Eu não sei o que é que o Amanhã me irá trazer.

Pousou o bloco na mesa-de-cabeceira e voltou a deitar-se. A morte, entretanto, saíra do quarto. Ouviu um eléctrico passar ao longe, talvez no topo da Rua D. Pedro V; já haviam poucos, substituídos por autocarros. O seu mundo morreria com ele. Fechou os olhos, ensonado, mas não adormeceu; não valia a pena porque a enfermeira não tardaria a dar-lhe o jantar.
No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora, a morte regressou. Pessoa sentiu-a como um véu a cair-lhe sobre os olhos e, para ter a certeza que era a mesma dama do dia anterior, pediu à enfermeira:
‘Dá-me os óculos.’
Colocou-os e olhou para o lado. Lá estava ela, radiante. Abriu os lábios gretados e tentou sorrir; uma dormência repentina afectou-o. Virou-se para o outro lado e viu a enfermeira sair depressa do quarto. O véu que tinha sobre os olhos tornou-se opaco. Depois negro. Os sons afunilaram-se num zumbido.
Um táxi passou, barulhento, e o ruído do motor foi abafado pelo vidro da janela. Pessoa não o ouviu.
A cama chiou, baixinho, com o estertor que agitou o corpo do poeta.
Quando o médico Jaime Neves, seu primo, e o colega Alberto Carvalho, entraram no quarto encontraram Pessoa sem vida.
O corpo parecia artificial: mais pequeno.
Na mesa-de-cabeceira, o relógio de Pessoa continuava a trabalhar. Morreu tão cedo!..., disse Jaime Neves, mordendo o lábio.
Mas Pessoa não morrera – Não há Morte! –, participara num truque de Magia!
Passara por um alçapão