quarta-feira, 30 de maio de 2012

Anjos, Velhos e Novos


Quando alguns leitores de 1955 leram os trechos respeitantes ao exército espectral de Dunharrow, instrumentalizado por Aragorn para derrotar os corsários de Umbar, no recém-publicado livro The Return of the King, de J. R. R. Tolkien, a terceira parte da trilogia de literatura fantástica The Lord of the Rings, deverão ter-se lembrado naturalmente dos ainda eminentes “Anjos de Mons”, os reforços celestiais que acudiram a um pequeno corpo expedicionário britânico, ajudando-o a fugir com segurança das mais numerosas tropas alemãs, na batalha travada perto da cidade belga de Mons, a 23 de Agosto de 1914.
Essa soldadesca sobrenatural era constituída por arqueiros ingleses mortos na Batalha de Agincourt, ocorrida a 25 de Outubro de 1415, no local onde hoje se situa a contemporânea cidade e comuna de Azincourt, no Norte de França. Nessa batalha – episódio da famosa “Guerra dos Cem Anos” (na verdade, durou cento e dezasseis anos) –, o jovem rei inglês Henry V derrotou o numeroso exército francês liderado por Charles I de Albret, condestável da França, inaugurando um interregno na imperante hegemonia francesa; a fortuna de ser-se salvo por corajosos companheiros de armas, provenientes do outro mundo, inspirou, pois, a imaginação inglesa nas trincheiras da Primeira Grande Guerra.
            O relato estreou-se a 29 de Setembro de 1914 no jornal vespertino inglês The Evening News (o primeiro jornal do mundo a ter telefone), editado nessa altura pelo jornalista Walter J. Evans, mas não menciona nenhuns anjos; com efeito, a notícia, intitulada The Bowmen, descreve de modo explícito que os agentes sobrenaturais «cintilantes» são os arqueiros fantasmas de Agincourt, liderados por São Jorge (de modo geral, os santos são personagens que não gozam de grande popularidade no culto inglês, mas, enquanto ícone nacionalista, São Jorge beneficiava do afecto popular). O bosquejo dos archeiros fantasmagóricos como sendo anjos foi desenhado pelos eclesiásticos que, poucos meses após a publicação da notícia, disseminaram-no entre as suas paróquias sob a forma de panfletos. Em principal, o relato intitulado A Troop of Angels, publicado a 3 de Abril de 1915 no jornal paroquiano Hereford Times do condado de Herefordshire, foi decisivo em estabelecer a identidade angélica dos intervenientes além-tumulares: nessa narração, uma jovem chamada Miss Marrable conta as experiências que dois soldados ingleses, presentes no corpo expedicionário salvo por “anjos” em Mons, lhe confidenciaram, inclusive uma descrição de como as tropas alemãs se paralisaram pelo terror ao serem acostadas pelo magote miraculoso.
Diversos jornais britânicos também reproduziram o texto original, discorrendo sobre ele com as mais imaginativas interpretações – chegou a revelar-se que o exército alemão ocultara a informação de que se encontraram flechas nos corpos dos soldados mortos a 23 de Agosto de 1914. Isolado no onfalo da voragem dessecretista, o autor da notícia continuava a ser interrogado por leitores ávidos de mais pormenores, porém o texto não era notícia nenhuma, mas um conto: uma ficção inventada pelo conhecido escritor galês Arthur Machen, que, desde 1910, trabalhava como jornalista para o The Evening News.
Machen sempre disse que o seu conto The Bowmen era apenas uma ficção, sem nenhum referente real, mas isso não impediu que a lenda dos “Anjos de Mons” ganhasse com rapidez um ímpeto e uma dimensão incomuns, firmando-se com solidez na psique popular como um verdadeiro episódio de intervenção divina – aliás, não faltou quem insultasse o próprio autor por tentar denegrir com calúnias a verdade sobre os “anjos patrióticos” e até alguns soldados ingleses, sobreviventes da Batalha de Mons, contaram à impressa que os “anjos”, de facto, os ajudaram a retirar-se do campo de batalha. Também em 1915, o conhecido escritor conservador Edward Harold Begbie publicou um livro intitulado On the Side of Angels, no qual acusou Machen de lucrar com verdadeiras visões espirituais, transmitidas telepaticamente por desgraçados soldados na frente de batalha e que ele sintonizara.
Em tempos de carestia, como o da Primeira Grande Guerra, é natural que os indivíduos desesperados sintam maior disponibilidade para encontrarem conforto junto de ideias marginais que refutariam em melhores circunstâncias. Em Portugal, por exemplo, o fenómeno das aparições de Fátima, cuja data principal de 13 de Maio de 1917 se inscreveu na sequência da partida do corpo expedicionário português para França, pede para ser cotejado com o dos “Anjos de Mons”.
Hoje, a secularização da sociedade não permitirá, certamente, um levantamento de massas de ordem similar em torno de um tema de natureza religiosa, mas os mecanismos que promovem a aceitação do inverosímil também funcionam com o pensamento político, como comprovou a emergência dos nacionalismos durante o século XX. Ao contrário dos nossos antepassados, somos demasiado rebuscados para acreditarmos nas chamadas grandes mitologias formativas, mas, por outro, talvez sejamos mais lestos que eles a acreditar em informação contrafactual desde que ela vá ao encontro daquilo que sentimos, porque, hoje, os sentimentos substituíram os factos e qualquer ficção difundida sem análise poderá ser, tal como o conto de Machen, lida como sendo verdade histórica. 
Por um lado não duvido de que isso acontecerá, mais tarde ou mais cedo. Por outro, prefiro não ser testemunha dos “anjos” que o século XXI poderá trazer.

Crónica publicada originalmente no número doze da Revista BANG! (Saída de Emergência).