sábado, 29 de setembro de 2012

Desabafo


Hoje, como ontem, é preciso ter coragem de leão para ser-se gigante entre anões.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

«A Lua do Loreto» em «Os Anormais»


A repugnante Estanqueira do Loreto é outra das personagens principais de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, o meu novo disco de spoken word, com texto e voz meus e música de Charles Sangnoir (La Chanson Noire).

Dona de um estanco setecentista (hoje diz-se tabacaria) construído nos insalubres Casebres do Loreto (as ruínas do Palácio dos Marqueses de Marialva, outrora situadas no local onde hoje se encontra a Praça Luís de Camões), a deformada Estanqueira foi alvo das partidas e das chacotas cruéis da populaça e dos poetas, acabando a vida no vizinho Largo do Calhariz, no início do século XIX, em condições miseráveis de desumanidade. Em meados desse século, a Estanqueira já adquirira aura de criatura lendária e tornou-se, até, ícone de produtos relacionados com o negócio do estanque, como comprova a pintura da tampa de uma caixa de rapé que pertenceu ao rei D. Pedro V e que se encontra na imagem acima.

Em Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, a desfigurada Estanqueira do Loreto é a Lua desse universo composto por indivíduos marginalizados: antropomórfica pietra del paragone que, entre a escória dos Casebres do Loreto, revela-nos o verdadeiro ouro oculto na nossa alma.
Nesta ligação, na qual o disco se encontra à venda, poderão ouvir o capítulo A Lua do Loreto: http://necrosymphonic.bandcamp.com/track/a-lua-do-loreto

A apresentação de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense será na próxima sexta-feira, dia 28, às 19H30, na Biblioteca Municipal Camões: lugar preenchido de significado, pois situa-se no Largo do Calhariz, onde a Estanqueira do Loreto terminou os seus dias.
Marquem nas vossas agendas, passem a palavra e apareçam: Charles Sangnoir tocará ao vivo, num lindíssimo piano oitocentista, enquanto eu, numa sessão de necropsia psicogeográfica, interpretarei A Lua do Loreto, em memória da Estanqueira e de todos os "anormais" que viveram em Lisboa.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Entrevista no programa Livraria Ideal


A entrevista que dei a João Paulo Sacadura no meu regresso ao programa Livraria Ideal (TVI24) já se encontra disponível para visualização nesta ligação: http://www.tvi24.iol.pt/programa/3494/90

Uma retrospectiva de todos os livros que escrevi nos últimos dois anos e meio, assim como a apresentação do meu trabalho mais recente: o disco de spoken word «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» (este com texto e voz meus e música de Charles Sangnoir, de La Chanson Noire).

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O triunfo da treta: história verídica


Haverá poema mais profético que The Triumph of Bullshit, escrito por T. S. Eliot? Profético na sua antevisão da desconsideração do intelecto em valimento da treta (da bullshit)? Como observou Harry Frankfurt em On Bullshit, os treteiros não se preocupam com a verdade, mas, somente em, entre aspas, "marcar pontos". Preocupam-se com a aparência do conhecimento, em mimetizar aquilo que pensam ser o conhecimento - e, muitas vezes, nem isso se encontra nos seus horizontes, tão limitados que estes são.

Como provou Otto von Guericke, no século XVII, através da sua luminosa experiência com os dois hemisférios de Madgeburgo (sobre os quais também escrevi nesta ligação), o vácuo - o vazio, lá está! - tem uma força extraordinária. Ainda hoje tem - o que é verdadeiramente espantoso: o vazio de inteligência, de carácter, de genialidade, tem uma força tremenda. Este, sim, é que é o verdadeiro "vazio lipovetskiano" no qual, infelizmente, se vive: é a era do vazio, pois é, mas de vazio de ideias, de intelecto, de valor. Existe por aí gente de muitíssima má qualidade: gente que não é sequer qualificada o suficiente para dar lustro ao chão pisado por aqueles a quem nunca haverão de chegar aos calcanhares. Cabe, pois, a quem tem horror ao vazio ter tolerância zero para com a treta e os treteiros.

sábado, 22 de setembro de 2012

«Os Anormais»: O Plutão da Pena


A apresentação do meu novo disco de spoken word, Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (texto e voz meus e música de Charles Sangnoir, de La Chanson Noire), observação erudita, simultaneamente tenebrosa e luminosa, sobre os volutabros imaginais de Lisboa, nos quais habitaram os indivíduos excêntricos e deformados que, neste trabalho, são reunidos sob a designação colectiva de "os anormais", será no próximo dia 28 (sexta-feira), às 19H30, na Biblioteca Municipal Camões. Este equipamento cultural emerge com uma significante importância simbólica, posto que se situa no Largo do Calhariz: nódoa psicogeográfica em que uma das personagens principais do disco, a horrenda Estanqueira do Loreto, acabou, miseravelmente, os seus dias.

Mas outra personagem importantíssima para este título é o Anão dos Assobios: indivíduo singular que, passeando pela zona mais movimentada da cidade, assustava os distraídos com assobios estridentes que produzia com dois dedos enfiados na boca. Os esqueletos do Anão dos Assobios e da Estanqueira do Loreto foram exibidos ao público no Museu de Patologia do Hospital de São José, na freguesia da Pena, e, hoje, os seus paradeiros permancem envoltos em mistério.

Em Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, o rigor histórico entretece-se com o hermetismo e o meu universo autoral para, a partir destas e outras personagens, interrogar temas como a marginalidade e a nossa necessidade de transcendência.
Nesta ligação, na qual o disco se encontra disponível para venda, poderão ouvir o capítulo O Plutão da Pena, alusivo ao Anão dos Assobios: http://necrosymphonic.bandcamp.com/track/o-plut-o-da-pena


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Observação etnológica sobre a origem da esquerda e da direita



Em política, as diferentes ideologias e convicções dos indivíduos e dos partidos políticos distribuem-se por um espectro de gradientes, cujos extremos se denominam de "esquerda" e de "direita". Entende-se o lado de "direita" como sendo aquele que reúne variados conjuntos de ideias, que, à superfície, até podem não se assemelhar, mas que, de maneira geral, defendem a manutenção, mas nunca a mudança, do estado das coisas; instrumentalizando, para o efeito, princípios de índole conservadora que almejam a sustentabilidade prolongada das tradições e dos modos de vida dominantes numa determinada sociedade. Assenta-se que o outro lado, de "esquerda", é, largamente, o que coloca em movimento filosofias ditas de reforma, que, inversamente às de "direita", procuram mudar o estado das coisas, promovendo para esse fim políticas revolucionárias ou de ruptura. Em síntese, e não chamando à colação as especificidades e as idiossincrasias de todas as ideologias que fazem parte do espectro político, estas são as diferenças fundamentais entre o lado de "esquerda" e o de "direita": um lado feito de política revolucionária e outro feito de política conservadora.

Como saber-se a que lado se pertence? Com efeito, pode pertencer-se somente a um dos lados o tempo todo ou a ambos em diferentes momentos, porque os indivíduos, tal como a própria política, que é sua invenção, são complexos e não podem ser catalogados com este nível de facilidade. Porém, generalizando, existirá sempre em nós uma inclinação mais forte para um lado do que para o outro, daí que pode especular-se sobre isso num pequeno exercício.
Considere-se estes dois exemplos muito simples: 1) a sociedade, hierarquizada em diferentes classes de indivíduos, privilegiados de acordo com o seu estatuto socioeconómico, faz-se de valores tradicionais como a fé, a família, a nação e o respeito pela autoridade, mas se ideias ditas "progressistas" ameaçarem esses valores basilares o tecido social poderá desagregar-se, logo é preciso, sempre, reprimi-las; 2) uma sociedade faz-se de ideias progressistas, como a liberdade e a igualdade de todos os indivíduos perante o estado, que é laico, e este deve fomentar um ambiente conveniente à criação de idênticas oportunidades para todos os cidadãos procurarem a sua felicidade, independentemente do seu estatuto socioeconómico.
Com qual destes exemplos vocês se identificam? De uma forma ou de outra, menos pormenor, mais pormenor, acaba-se por concordar mais com uma narrativa do que outra e é dessa forma que nos podemos classificar como sendo de "direita" ou de "esquerda". Mas de que modo foram formuladas estas denominações que, ao fim e ao cabo, classificam dois sistemas antagónicos de olhar para a construção da sociedade e nos quais a maioria das gentes se inclui?

A explicação que, até agora, reuniu mais consenso é a de que estes rótulos foram criados no final do século XVIII, no período da Revolução Francesa, quando, na Assembleia Nacional, os indivíduos se sentaram em lados opostos da sala: os partidários da monarquia, conservadores, sentaram-se à direita do presidente e à esquerda deste sentou-se a facção revolucionária que defendia a mudança de regime; posto que os conservadores do estado das coisas ocuparam o lado direito do parlamento e os partidaristas da mudança se situaram à esquerda, esses adjectivos passaram, pois, a designar duas diferentes formas de pensar e de fazer política. Mesmo assim, ainda é possível recuar um pouco mais e, com maior profundidade, encontrar uma origem mais antiga para estas duas direcções opostas. 

É inegável que, mesmo num mundo cada vez mais homogéneo, diferentes culturas ainda guardam diferentes maneiras de executar tarefas idênticas e isso influencia muitíssimo o desenvolvimento das ideias. Meditemos no seguinte: o modo como nós, ocidentais, lemos os livros é seguindo as palavras no sentido da esquerda para a direita e de cima para baixo, mas muitas etnias orientais lêem de um modo totalmente oposto, ou seja, da direita para a esquerda e de baixo para cima; estas tendências também se manifestam no cinema e na banda desenhada, pois reparem que a maioria das sequências dos filmes e bandas desenhadas ocidentais ocorre no sentido da esquerda para a direita, enquanto que nos filmes e bandas desenhadas orientais se verifica o contrário. Por que é que isto acontece? Por que é que a escrita e a leitura se realizam destas duas maneiras tão conspícuas? Para encontrar uma resposta temos de recuar até uma altura em que a escrita não existia e perceber, então, o que poderá ter contribuído para a sua criação. A resposta que se afigura como sendo a mais provável é a de que o desenvolvimento da escrita não só foi uma consequência do agriculto, como já foi provado há muito tempo (a escrita foi inventada para responder à necessidade mais prosaica de, com fidelidade, contabilizar armazenamentos e registar transacções), como o modo como se escreve foi certamente influenciado pelo sentido com o qual essas sociedades primitivas, em virtude das suas preferências, aravam e semeavam os campos: os precursores da escrita contemporânea colocavam caracteres nas superfícies preparadas para o efeito, fossem placas de argila ou folhas de pergaminho, tal como plantavam cereais num terreno lavrado - e ainda hoje diz-se "lavrar" quando se alude à escrita. Não é uma coincidência. Somos depositários dessas heranças.

Em similitude, as origens do lado de "esquerda" e do lado de "direita" poderão estar relacionadas com o modo como nasceram as primeiras cidades. Em essência, os nossos antepassados ergueram os seus povoamentos primitivos em locais junto de água corrente; para ser mais exacto, nas margens dos rios. As margens dos rios ofereciam, evidentemente, muitas vantagens e o facto de tratar-se de água corrente garantia que esta fosse sempre limpa, mas, ainda assim, surgiam algumas desvantagens, mesmo em climas mais amenos; em principal, o desconforto provocado pelos ventos oriundos do Norte, sempre frios e fortes, principalmente nos Invernos. Por isso, as primeiras aldeias, mais tarde as primeiras cidades, sempre foram construídas preferencialmente nas margens direitas dos rios, porque eram as únicas que permitiam erguer defesas a Norte, feitas pelas linhas das habitações ou por muros altos que quebravam os ventos, ao mesmo tempo que deixavam abertas as faces meridionais das cidades, voltadas para os rios. Se se construísse nas margens esquerdas dos rios, as cidades ficariam sem defesas diante das ventanias. Qual é a margem direita de um rio? É aquela que fica à nossa direita quando nos colocamos de costas para a nascente. 
Com a passagem do tempo, as cidades vão crescendo aos seus ritmos e vão enriquecendo; mais tarde ou mais cedo, pelas razões mais variadas, as margens esquerdas dos rios começam a ser, também, ocupadas. Ou porque a cidade se agiganta o bastante para justificar uma absorção do seu lado oposto e, nesse caso, a margem a Sul passa a ser morada de gente nova que quer tentar a sorte no arrabalde; ou porque os indivíduos desfavorecidos, como trabalhadores braçais e minorias étnicas, vão construir aí os bairros. Seja como for, as grandes cidades das margens direitas dos rios são sempre mais antigas e prósperas que as das margens esquerdas: essa noção - de que os moradores do lado direito têm tudo a ganhar em conservar o estado das coisas e de que os moradores do lado esquerdo têm tudo a ganhar em mudar as condições de vida - influenciou, de certeza, o baptismo de (margem) "esquerda" e de (margem) "direita" dessas duas maneiras tão diferentes de pensar a construção das sociedades. Uma visão conservadora, apoiada naquilo que se pensa ser valores tradicionais e elitistas, e outra visão, reformista, que se dirige à procura de condições mais justas de vida.

Não duvido que quando as duas facções adversárias se sentaram à esquerda e à direita do presidente da Assembleia Nacional de Paris, em 1789, sabiam muitíssimo bem o que estavam a fazer e que cada uma escolheu o lado que, por defeito, era o seu.
Esta dualidade integrante da nossa matriz foi, com elegância e fair play, descrita neste feitio pelo filósofo inglês utilitarista John Stuart Mill: «A party of order or stability, and a party of progress of reform, are both necessary elements of a healthy state of political life» (em On Liberty. 1859). Todavia, Mill referia-se à esquerda e à direita do centro, democráticas, e não às dos extremos. Só se pode construir pontes até um certo ponto.


Imagem:  Jacques-Louis David, Le Serment du Jeu de Paume (1791). Não é acidental que seja pelas janelas do lado esquerdo que sopram os ventos que movem as cortinas e insuflam de ar fresco o aposento.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Nova data para a apresentação do disco «Os Anormais»

 

A apresentação do disco Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense será no dia 28 (sexta-feira) às 19H30 na Biblioteca Municipal Camões.

Spoken word com texto e voz meus e música de Charles Sangnoir, sobre os indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo dos séculos. Uma viagem simultaneamente negra e luminosa aos volutabros imaginais de Lisboa, na qual se entretece universo autoral, rigor histórico e hermetismo.

O disco encontra-se disponível para audição e venda nesta ligação: http://necrosymphonic.bandcamp.com/album/os-anormais

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Quando é um político que se sacrifica


Nesta altura em que toda a gente, em menor ou maior grau, aguçou a sua consciência política, vale a pena lembrar um nome de vital importância que, lamentavelmente, tem sido esquecido: Manuel Fernandes Tomás.

Nascido a 31 de Julho de 1771, o "patriarca da liberdade portuguesa", como viria a ser cognominado, matriculou-se com apenas quinze anos de idade na Universidade de Coimbra. Abreviando um percurso extenso de vida, que tomaria muitas linhas a explanar, basta reter que, muito mais tarde, em 1811, Manuel Fernandes Tomás voltou a essa cidade, como seu Provedor da Comarca, e foi a partir dessa altura que iniciou o estudo legislativo das constituições políticas, europeias e norte-americana, que, entretanto, vieram à luz. Em paralelo, indignado com o servilismo e a decadência dos partidários do Antigo Regime e com os autoritarismos das forças francesas (mais tarde também as inglesas, lideradas pelo marechal William Beresford, que se instalaram no país em altos cargos militares), publicou diversas obras reformistas e de protesto, nas quais se inclui o célebre Repertório Geral ou Índice Alfabético das Leis extravagantes do Reino de Portugal (1815-1819). Em 1817, muda-se para o Porto, para desempenhar o cargo de Desembargador da Relação, e enceta esforços para formar um novo tipo de regime, de feição liberalista, no sentido de regenerar Portugal - numa altura em que "liberal" significava algo muito diferente de "desregulação bancária para as empresas".
É, pois, juntamente com José Ferreira Borges (advogado e secretário da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro), José da Silva Carvalho (juiz dos Órfãos) e João Ferreira Viana (comerciante da praça do Porto), que, logo no início do ano seguinte, funda o Sinédrio: associação discreta que, reunindo juristas, militares, clérigos e civis, objectivava a criação e implementação de um novo regime liberal.

Em 1820, observando com redobrada atenção a vizinha sublevação galega de Março, que restaurou "La Pepa" - a Constituição de Cádis (de 1812) -, os elementos do Sinédrio aceleraram os seus esforços revolucionários e, nesse mesmo ano, a 24 de Agosto, instauraram o primeiro regime liberal do país, naquela que ficou conhecida como a Revolução Liberal do Porto. Este movimento foi surpreendente, porque contou com o apoio de todas as classes sociais, que exigiam, no mínimo, dois grandes objectivos: o retorno da família real portuguesa ao país e a reinstauração do Pacto Colonial (em síntese, a exclusividade portuguesa de comércio com o Brasil). Manuel Fernandes Tomás escreveu o Manifesto aos Portugueses, no qual deu a conhecer a natureza da revolução e seus desideratos, e, de imediato, por unanimidade, iniciou o projecto de lavrar uma constituição.
Essa inaugural constituição, baptizada de Constituição Política da Monarquia Portuguesa, foi jurada por D. João VI, no Palácio de Queluz, a 25 de Setembro de 1822. Porém, ao mesmo tempo que foi redigindo a constituição, Manuel Fernandes Tomás viu a sua saúde debilitar-se rapidamente: morreu, pouco tempo depois, a 19 de Novembro de 1822. O repentino falecimento chocou amigos íntimos, como o poeta Almeida Garrett.

Quanto à causa da morte, o que é possível auferir-se dos relatos de época é que ele, indivíduo imbuído de um elevadíssimo sentido do dever, como é raríssimo encontrar-se hoje, recusou imperativamente receber honorários pelas suas funções políticas, declarando que estava na política por patriotismo e não pelo dinheiro. Gastando as suas poupanças, tanto no orçamento doméstico e nos esforços revolucionários, Manuel Fernandes Tomás passou fome nos últimos meses de vida - aqueles em que redigiu olimpicamente a inédita constituição - e morreu em consequência dessa privação.
As primeiras cortes ordinárias, reunidas a 1 de Dezembro, aprovaram a atribuição de subsídios anuais à sua viúva e filhos - não sem vozes discordantes, o que é verdadeiramente nóxio: dezassete deputados tiveram a frieza de votar contra a atribuição dessa caridade à família do homem responsável pela criação do regime que lhes proporcionava os cargos que desempenhavam e que, para que esse mesmo regime regenerador fosse uma realidade, morrera de fome. 

Hoje, o nome de Manuel Fernandes Tomás é, infelizmente, algo desconhecido do grande público, mas devemos muitíssimo ao seu trabalho e a sua vida é um exemplo ímpar de rigor e devoção aos ideais da liberdade e da justiça. Nesta altura em que tão poucos pedem sacrifícios a tantos, vale a pena recordar Manuel Fernandes Tomás que, individualmente, e sem recolher benefícios - mesmo aqueles que lhe eram devidos por direito - se sacrificou por todos.
Também vale a pena recordar o que ele leu às cortes provisórias, em Fevereiro de 1821: «Quando um governo, senhores, trata o interesse dos povos pelo modo que tendes ouvido, o que, desgraçadamente, é muito verdadeiro, fazendo ou consentindo que se façam males tão grandes, ninguém poderá deixar de confessar que ele é um governo mau; e, em tal caso, seria bem admirável que houvera ainda quem se lembrasse de espoletar à nação o direito de escolher ou de fazer outro melhor.»


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Marchar, marchar...


«If a man does not keep pace with his companions,
perhaps it is because he hears a different drummer.»
Henry David Thoreau, Walden (1854).


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

'Masterclass' cancelada


Lamento, mas, por motivos pessoais, tive de cancelar a minha masterclass de Domingo, dia 16, no festival MOTELx deste ano.
Desmarquem das vossas agendas. Obrigado.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Anormais reais: o Geek e o Xexé


Hoje, a palavra norte-americana geek (sem tradução directa para língua portuguesa, mas cujo sentido se contígua ao transmitido pela palavra anormal) é, quase em exclusivo, utilizada para designar o arquétipo do adolescente tímido, "caixa de óculos" e sem competências sociais, que é obcecado por tecnologia e banda desenhada, mas, em outros tempos, principalmente na transição do século XIX para o XX, o nome geek era dado aos artistas dos circos e feiras ambulantes que, nos seus espectáculos, comiam cabeças de galinhas, cobras e ratazanas vivas.
Na imagem acima, fotografada no ano de 1938 na cidade norte-americana de Donaldsonville, no estado do Louisiana, pode ver-se um geek autêntico a trincar a cabeça de uma serpente para gáudio da assistência. De maneira geral, estes artistas eram indivíduos simplórios ou padecentes de doenças mentais que aceitavam ou eram obrigados a participar em desafios de natureza aberrante, como os de comer insectos e cabeças de répteis e roedores. O New International Dictionary of the English Language (1954) oferece esta definição de geek: «um "homem selvagem" circense que comia as cabeças de cobras e galinhas vivas nos seus espectáculos». É uma designação que provém de geck, quinhentista palavra inglesa que significava louco ou imbecil e que, por sua vez, teve origem no nome holandês gek, que possuía o mesmo sentido.

A lamentável figura do geek das feiras itinerantes foi popularizada junto do grande público pelo filme Nightmare Alley, realizado em 1947 pelo cineasta inglês Edmund Goulding, que estreou dois anos depois em Portugal com o título O Beco das Almas Perdidas: neste filme, que adapta o romance homónimo do escritor norte-americano William Lindsay Gresham, publicado em 1946, o actor norte-americano Tyronne Power interpreta a personagem Stan Carlisle, vigarista que, a dada altura, por culpa de um reverso de fortuna, se vê obrigado a fazer de geek numa feira para ganhar a vida. No início da década de oitenta do século passado (no ano de 1981), o músico inglês Ozzy Osbourne também fez de geek, mas acidentalmente, quando, embriagado, comeu a cabeça de uma pomba viva durante uma reunião de trabalho com executivos da distribuidora discográfica Columbia Records. Não deixa de ser interessante que essa empresa tenha ido buscar o seu nome à personagem Columbia: a personificação feminina e republicana (com barrete frígio e tudo) dos Estados Unidos (que, entretanto, perdeu popularidade em relação à simbologia romântica oferecida pela Estátua da Liberdade) e cujo nome é uma variação do apelido do navegador genovês Cristovão Colombo, o descobridor oficial do Novo Mundo - em latim, columbus significa pombo).

 Se a primeira mudança de sentido da palavra geek, de imbecil para anormal de feira, é, mais ou menos, linear, não é clara a sua transformação em adolescente, embora se possa especular com segurança que a popularização desse significado ocorreu a partir de 1984 com a estreia do filme Sixteen Candles (Dezasseis Primaveras), a primeira longa-metragem do cineasta norte-americano John Hughes, no qual a personagem intepretada pelo actor norte-americano Anthony Michael Hall é conhecida como Geek.

Contemporânea do geek de feira norte-americano, outra personagem grotesca - avatar (praticamente esquecido) da psique popular - que dava pelo nome de Xexé, foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados da década de trinta do século passado, quando esta personificação do Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os dias.
    
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de "cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da primeira metade do século XVIII e a que D. José tentou dar o fim com uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes) perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita, pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo de ruptura.

 O nome Xexé, cuja grafia deixa uma suspeição de proveniência galega, poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi, relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo para a resolução deste enigma.

Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé - tão descabelado quanto um geek de feira - foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas e das celebrações turísticas dos santos populares.

  

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Finança e finanças


Agora que se avizinha mais sobrecargas fiscais sobre todos nós, vale a pena reflectir sobre umas curiosas ligações etimológicas que, infelizmente, têm sido esquecidas. Por exemplo, a palavra «finança», que dá nome a um importante ofício estatal, pertence à família etimológica de palavras como «finar» ou «finitude»: neste caso, a «finança», que deriva do verbo latino «finire», significa «morte», no mesmo sentido de «matança». Este é o significado original de «finança».
Ora, percebe-se bem como é que esta palavra, sinónimo de «morte», transitou para o universo monetário: é que as ditas finanças podem acabar mesmo em finança. Ora, percebe-se ainda melhor que, por esse ponto de vista, os diversos ministérios das finanças existentes continuam perfeitamente sintonizados com essa herança etimológica que, entretanto, nós temos vindo a esquecer e que eu, numa tentativa de ser um bom cidadão, venho lembrar.

(Foto: monge italiano, vestido com traje funerário. Século XIX.)

O escritor


Um pouco de sangue nas mãos e muita luz na cabeça: ser escritor é isto.

(Thomas Eakins, The Clinic of Dr. Gross. 1875)

sábado, 1 de setembro de 2012

«Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» à venda a partir de hoje


Já é dia 1 de Setembro, a data oficial de edição de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (spoken word erudito com texto e voz meus e música de Charles Sangnoir) e este disco está, a partir de hoje, à venda. Em breve, poderão encontrá-lo nas lojas, mas o site da editora já o disponibiliza: http://necrosymphonic.bandcamp.com/album/os-anormais