sexta-feira, 26 de outubro de 2012

«Os Anormais» disponível no 23º Amadora BD


Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, spoken word com textos e voz meus e música de Charles Sangnoir, vai estar disponível durante o 23º Amadora BD no stand da livraria Dr. Kartoon e amanhã, entre as 17H00 e as 19H00, eu estarei no espaço dos autógrafos para personalizar essa e outras obras minhas. Fica a ligação para ouvirem o segundo capítulo de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, intitulado O Plutão da Pena, assim como um excerto desse texto: http://necrosymphonic.bandcamp.com/track/o-plut-o-da-pena
«Enroupado de lã preta, o Anão dos Assobios da paróquia da Pena é um hodierno e cinocefálico Tibicena que sopra arcanos por Lisboa naquilo a que os comerciantes ingleses chamam de “assobios-de-lobo”: estrídulas gaitadas produzidas com os dedos enfiados na boca.

Quem são estes anões cuspidos pelo ventre da terra?

Para que participações plexiformes foram projectados?

Amoldados na forja de Hefesto, vejam-nos emergir desse estrato plutoniano em períodos de pestilência e guerra. Os assobios deles mimam os esguichos gasosos solfejados por extrusivas salpinges vulcânicas: comunicações de silfos do submundo de buchos cheios de ferrugem – a língua de animais com ferro na alma, pois estas criaturas fenocristalóides assenhoreiam a arte de extrair metais dos minérios: o magistério metalogénico.

Na mitologia norte-europeia, os anões, seres sapudos que povoam as partes privadas das serranias, apresentam-se como mestres metalúrgicos; tropo transmitido até aos nossos dias pelo mago suíço Paracelsus que, no século XVI, criou a – até aí inédita – figura do gnomo: elemental imaginário que reside nas cavidades intestinas e é capaz de passar por paredes de pedra. Segundo Paracelsus, os gnomos, cuja etimologia por ele inventada significa habitantes da terra, evitavam a companhia dos homens, mas nas Eddas, escritas pelo historiador islandês Snorri Sturlson, os homens são criados, justamente, pelos anões: o homem e a mulher originais – Ask e Embla –, feitos de terra e casca de árvore. Os gnomos paracelsianos são os ínfimos humanóides que, nas histórias infantis, se encovam no mundo quotidiano. Há magia velha por trás dos rodapés, por baixo dos tapetes e entre as ervas mais altas dos jardins – existem espíritos milenares entre as nossas almas bebés: e quando finalmente perecem, cansados de carregarem tanta sabedoria, convertem-se em árvores; como aquela em que foram talhados Ask e Embla.

De acordo com a dendrolatria pré-diluviana, já tivemos corpos vegetais: existem ecos da jornada de preguiçosa vida vegetal para impetuosa vida animal no espantoso livro Hypnerotomachia Poliphili do dominicano italiano Francesco Collona; existem ecos desta ligação dendrológica nas mitocôndrias que residem nas nossas células e na hemoglobina que, pasme-se!, pode encontrar-se nos caules mais carnudos das plantas. Existe ferro nos veios das montanhas e nas nossas veias… Não é a toa que, nas lendas de outrora, os anões fruam já formados das fragas: eles e nós somos descendentes da prole goblinesca dos Telamones: titãs condenados a serem cariátides das estruturas mais densas do planeta e que, com o inexorável avançar do tempo, se integraram em definitivo na própria rocha. De pedra a planta e de planta a bicho. De Pedra Bruta a Pedra Cúbica. Os ritmos da selecção natural e os da matéria amalgamada no fundo do crisol são sempre os mesmos: inícios morosos que dão lugar a cadências cada vez mais aceleradas. Caminhando pelas bulhentas ruas da freguesia da Pena com a ajuda de uma bengala – tirso recheado de fogo prometeico –, o desfigurado e fedentino Anão dos Assobios é um mercurial mensageiro metassomático: é um anão que nos lembra uma idade em que andavam gigantes sobre a terra.»

23º Amadora BD


Começa hoje o 23º Amadora BD (Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora): o tema desta edição é a Autobiografia.

Consultem o site oficial, no qual poderão ler a programação e ficar a saber os dias e as horas dos lançamentos dos livros que mais desejam ler e das sessões de autógrafos dos vossos autores preferidos: http://23amadorabd.com/pt/

Eu estarei lá amanhã, das 17H00 às 19H00, na secção dos autógrafos, para assinar os meus livros de BD e não só: no stand da Kingpin Books poderão encontrar a nova edição de O Pequeno Deus Cego (escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa - nomeado para as três categorias principais dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada deste ano: Melhor Álbum, Melhor Argumento e Melhor Desenho) e no stand da Dr. Kartoon poderão encontrar É de Noite Que Faço as Perguntas (escrito por mim e desenhado por Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel Silvestre da Silva e Richard Câmara) e, ainda, o meu novo CD de spoken word Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (com texto e voz meus e música de Charles Sangnoir).
 

sábado, 20 de outubro de 2012

Branco


Os nossos mortos estão connosco, «vibrando», como escreveu Emily Dickinson, «numa diferente medida, por trás de um véu de pouca espessura». Este é o véu da memória: o único que, no meu entender, existe entre a morte e a vida. Mas a memória, mas os sonhos - onde nos reencontramos com os nossos mortos - são mnemónicos. Os nossos mortos são prisioneiros desse envoltório sinestésico; translúcido e indevassável como celofane: impermeável, mas edaz, pia-máter que mantém as lembranças tolhidas numa incorruptível e incomunicável esfera que as aparta e é apenas atingível, em efémeros lampejos, através da alucinação ou da arte. Vale a pena acender uma vela aos nossos mortos: não para orientá-los na nossa direcção, por trás desse «véu de pouca espessura», mas para não esquecermos que a memória se gasta como cera sob o fogo e que cada vez que nos lembramos deles, na verdade, apagamo-los, devagar, de dentro de nós. Não é à toa que a trágica traça é o símbolo da alma, no seu obstino em engolfar-se no chamariz de chama. Só mais um pedacinho, pede, só mais um pedacinho de dádiva, à aproximação da luz miserável - do alvor que extingue as queridas sombras; da branca que rarefaz as recordações.

(Imagem: «A Hopeless Dawn» de Frank Bramley, 1888.)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

«O Pequeno Deus Cego» nomeado para três Prémios Nacionais de Banda Desenhada


O Pequeno Deus Cego, escrito por mim, desenhado por Pedro Serpa e editado pela Kingpin Books (2011), está nomeado para três Prémios Nacionais de Banda Desenhada, atribuídos pelo Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora: Melhor Álbum, Melhor Argumento e Melhor Desenho.
Acrescento que desde que "regressei" à escrita de banda desenhada com o álbum Mucha (Kingpin Books, 2009), depois de uma pequena pausa, este é o terceiro ano consecutivo que os meus livros (Mucha, É de Noite Que Faço as Perguntas e O Pequeno Deus Cego) estão nomeados para as três categorias principais destes que são os mais importantes prémios portugueses de banda desenhada.



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Novo conto original na Biblioteca Digital do Diário de Notícias


A partir de hoje, e até dia 30 de Janeiro de 2013, a versão online do jornal Diário de Notícias, em parceria com a Escritório Editora, abre as portas de uma exclusiva e gratuita Biblioteca Digital, composta por trinta e um contos originais, disponibilizados às quartas-feiras e sábados e escritos por autores portugueses. Para lerem estes trabalhos basta registarem-se no site do Diário de Notícias; a ligação para a página oficial da Biblioteca Digital é a seguinte: http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx

O meu conto será publicado no dia 29 de Dezembro (espécie de prenda de Natal para os meus leitores) e intitula-se No Muro. Publico, em seguida, um excerto:

«O cheiro dos livros era diferente do dos arquivos do escritório onde trabalhava: aquelas narrativas e aqueles ensaios, lidos de passagem nas matutinas montivagações, não tinham o mesmo cheiro dos recibos e das cópias dos contratos impressas em papel-químico. E, no entanto, tudo isso era feito de papel. Já matara imensos peixinhos-de-prata, asilados da luz entre os livros, mas no escritório, também empanturrado de papel, não havia nenhuns. Porquê? Estava a aprender que nem tudo o que era feito de papel era da mesma ordem – e ao folhear os livros, uns a seguir aos outros, aprendia mais coisas. Aprendia que os homens, todos feitos da mesma carne, tal como os livros e os recibos eram feitos do mesmo papel, não eram iguais: havia homens que eram mais como os livros e existiam outros homens que eram mais como os recibos e separavam-nos uma distância intransponível, uma trágica incomunicabilidade.
E ele estava a aprender a qual dos lados pertencia.»

No Muro, o meu novo conto original, ficará, repito, disponível no dia 29 de Dezembro na página da Biblioteca Digital

domingo, 14 de outubro de 2012

Sobre o cancelamento do programa Livraria Ideal


Quem seguiu com atenção e regozijo as transmissões televisivas semanais do programa cultural Livraria Ideal (TVI24), sobre livros e escritores, apresentado por João Paulo Sacadura, já deu conta de que foi cancelado abruptamente, há poucos dias, após três anos e meio no ar; período em que centenas de escritores e editores tiveram oportunidade de falar sobre as suas obras durante vinte e cinco minutos em cada emissão, o que em cronometria televisiva corresponde a um épico intervalo de tempo - sobretudo nesta conjuntura que promove o elíptico, o sintético e o superficial. Ora, em Livraria Ideal nada existia de elíptico, sintético e superficial, em virtude da empatia, rigor e profissionalismo de João Paulo Sacadura: magnífico entrevistador e homem de cultura. Ele foi o rosto e proverbial alma do programa que, à sua imagem, sempre se pautou por uma enorme generosidade para com os entrevistados.

Tive a felicidade enorme de ter sido duas vezes convidado do programa, em 2010 e neste ano, e recordarei o respeito e o genuíno interesse com que fui recebido; qualidades francas que raras vezes encontrei junto de outros profissionais da comunicação social, em principal na televisão. De facto, o nome Livraria Ideal não poderia ser mais perfeito: consistiu, realmente, numa livraria Ideal - um espaço privilegiado em que os escritores foram recebidos como escritores e não como entertainers; um espaço em que os livros foram olhados como livros e não como transitória manufactura de marketing. Todos os indivíduos de cultura deste país ficaram mais pobres com o cancelamento absurdo de Livraria Ideal, pois nada resta que possa substituí-lo: era o único, reitero, o único programa televisivo de qualidade sobre livros e escritores, pois em que outro podem os escritores «mostrar a língua portuguesa», como escreveu Alexandre O'Neill, em vez de serem os apresentadores ou os pivots a quererem mostrá-la por eles?

Em paralelo, também foi cancelado outro programa cultural, apresentado por João Paulo Sacadura: o Cartaz das Artes; emitido na TVI durante quase nove anos.


No limite, o cancelamento destes programas culturais - destes labores de verdadeiro serviço público - prova que nestes tempos em que nada é levado a sério ainda existem tragédias. Tragédias que adquirem contornos obscenos quando ocorrem ao mesmo tempo que, na mesma estação de televisão, estreia, com gala e glamour, mais uma temporada - a terceira, repare-se bem - desse inenarrável compêndio de estupidez que é Casa dos Segredos: arremedo do pior que os reality shows têm para oferecer, no qual um grupo de jovens à procura de fama fácil está mais do que disposto a prostituir-se em directo, mostrando as suas nudezes corporais (e mentais) para gáudio de milhões de espectadores. Este é o chamado "entretenimento rasca" no seu ponto mais hipocultural possível, interpretado por gente postiça oriunda do mundo artificialíssimo dos pasquins cor-de-rosa, das revistas pornográficas e do bas-fond de outros universos limítrofes: ícones de papel que os espectadores reconhecem com a familiaridade impressa nas páginas de publicações que não são imprensa por mérito próprio, mas famélicos satélites televisivos; gente tornada cintilante pela máquina mediática, mas que, em circunstâncias comuns, de dia-a-dia, não passam de pobres-diabos, cujas famílias aguentam, algumas com estoicismo, outras com oportunismo, os mais deprimentes episódios que os seus desqualificados filhos, irmãos e netos protagonizam. Rocambolescarias de pornografia de pechisbeque que, no canal privado que as transmite continuamente em directo, já angariam mais espectadores que o total de indivíduos que assistem à programação do segundo canal público: o canal da cultura, por excelência. Dá que pensar.

A simultânea morte da cultura, pelo cancelamento de Livraria Ideal e Cartaz das Artes, e a promoção de um tipo reles de entretenimento que faz cócegas aos mais desprezíveis sentimentos dos indivíduos, pela estreia de Casa dos Segredos, é torpe - é nóxio. Custa-me a acreditar que a Media Capital, grupo de media detentor de uma estação de televisão com diversos canais, estações de rádio, veículos de imprensa periódica e, ainda, serviços de Internet, não poderia encontrar neste florilégio de ofertas um espaço para a cultura e para os programas que decidiu cancelar. É um funesto reflexo do estéril período que atravessamos: um reflexo violento - horrível.

A língua russa possui uma expressão singular, de quase impossível tradução para português: poshlost.
Esta palavra é usada para designar um estádio de estupidez banal e mesquinha, mas também promiscuidade. É um nome que vai na direcção da nossa palavra boçal, mas a boçalidade é inculta, grosseira, ordinária, enquanto que poshlost é, além disso tudo, a satisfação sensual e félica de sê-lo. (Nabokov, cujo ouvido para a linguagem continua, salvo pouquíssimas excepções, sem rival, denominou-a como poshlust, numa conjunção de posh e lust, conferindo-lhe um significado ouropélico muitíssimo adequado.)
É, pois, a palavra que utilizo para designar esta situação, pois é de uma baixeza, de uma insensibilidade e falta de inteligência absolutamente monstruosas: tudo isto é poshlost.

Manifesto a minha total solidariedade para com João Paulo Sacadura, que tanto fez pela cultura e pelas letras nos seus programas: muito obrigado, João, pelo Livraria Ideal e pelo Cartaz das Artes e pelo que representaram. Bem-hajas, amigo, por tê-los feito e espero que, muito em breve, possas, novamente, surgir com novos projectos, porque a tua ausência de semanas já tem o peso de anos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Viva Corvo!


Hoje de madrugada, acabei a leitura de um título que me emocionou muitíssimo: «The Quest For Corvo: An Experiment In Biography», de A. J. A. Symons, sobre o vergonhosamente olvidado escritor, fotógrafo e pintor Frederick Rolfe (pronuncia-se "rofe"), mais conhecido pelo pseudónimo Barão Corvo.
Já escrevi diversas vezes que Rolfe é um dos meus heróis literários - um verdadeiro génio da literatura que morreu sozinho, em Veneza (1913), na mais abjecta miséria. Seja em Veneza ou em outro lado qualquer, os génios, de maneira geral, comem e morrem sozinhos - só os parasitas comem e morrem acompanhados: não é de espantar que essa palavra venha da grega parásitos, que significa "aquele que come junto de" ou "aquele que come do mesmo prato que". Mas este não é um costume que tenha morrido na Grécia antiga: podem crer que ainda hoje existe quem faça profissão do hábito de comer dos pratos dos outros.

A biografia de Symons descreve com isenção e compaixão a catabática trajectória de Corvo; autor que sempre, sempre e sempre esteve na vanguarda daquilo que se propôs a fazer, fossem fotografias (foi um dos pioneiros da fotografia a cores, numa altura em que a fotografia a cores não galvanizou ninguém), fossem pinturas (foi um dos pioneiros de um estilo expressionista, numa altura em que esse estilo não galvanizou ninguém) e foi o autêntico inventor - muito antes de Joyce, por exemplo - do romance enciclopédico e polissemântico (numa altura em que aquilo que galvanizava os leitores era o superficial e unidimensional). Costumo dizer que as pessoas inteligentes sofrem sempre mais - e a vida de Corvo comprova-o. Publicada em 1934, a biografia de Symons, livro pioneiro no género da moderna biografia (foi este o livro que credibilizou - se não inventou - a investigação biográfica), é uma biografia autêntica: ou seja, não se lê como se fosse um romance. Romance é romance, biografia é biografia: e Symons, conhecedor de ambas as linguagens, sabe muito bem o que faz, estruturando uma investigação sólida e desarmante, na qual não existe nada, mas mesmo nada, de afectado, vaidoso, pedante, paternalista ou imbecil. É uma biografia que é, em simultâneo, dura e terna para com Corvo: não é um libelo nem uma eulogia e, por manter intacto esse fino equilíbrio, é um livro extraordinário.

Existe uma passagem que, confesso, me emocionou mais do que todas as outras: perto do final do livro, depois de descrever a miserável morte de Corvo, lamentando a incapacidade para descortinar o paradeiro dos seus maravilhosos manuscritos perdidos, Symons desvenda que recebeu uma carta inesperada, endereçada de Londres, que lhe gelou a espinha, pois a caligrafia, reconheceu-a, era a de Corvo.
Leu a carta, endereçada por um sujeito chamado John Bland, e descobriu que consistia numa mensagem manuscrita pelo filho de um velho amigo de Rolfe, que tinha sete anos de idade quando conheceu o escritor; este enviara-lhe, durante algum tempo, cartas nos seus aniversários: «Rolfe was an occasional visitor to the house. I remember him as a man of charming manners to a child, who knew all about magic and charms, who wore strange rings and told fascinating histories».
A caligrafia corvina era lindíssima e o miúdo guardou todas as cartas; mais tarde, ao fazer dezasseis anos, achou que estava na altura de aprender a escrever melhor, pois tinha uma letra terrível e, então, lembrou-se das cartas de Corvo, com a espantosa caligrafia. Usou-as como modelo e aprendeu a escrever com a letra do falecido escritor: «the caligraphy of Frederick Rolfe still lives».

Felizmente, também os manuscritos perdidos foram aparecendo e, hoje, a maioria da obra de Rolfe já foi publicada, embora lhe faleça o mais que merecido reconhecimento. Porém, como costumo dizer, a obra fica para sempre e é ela o único antídoto contra a morte.
Quem se lembra, hoje, dos escritores da moda, contemporâneos de Corvo?
Quem se lembra, hoje, das críticas, dos artigos promocionais e dos prémios de compromisso, criados para promovê-los e para sustentá-los?
Ninguém: desapareceram todos, por virtude da sua própria efemeridade.
Mas lembramo-nos, hoje, do excêntrico e genial Barão Corvo que esfaimando-se e dormindo numa gôndola ainda foi capaz de escrever mais uma obra-prima antes de falecer. Infelizmente, já não existem pessoas desta cepa e as que, como ele, existiram, parecem-nos tão irreais quanto personagens de ficção. Na sua vontade indómita de criar - de criar genialmente - e, também, na sua heteronímia, Corvo foi uma espécie de Fernando Pessoa muitíssimo mais ousado, muitíssimo mais trágico. Mas para recordar Corvo, em vez de resgatar um verso de Pessoa, prefiro lembrar um de outro grande poeta português, injustamente esquecido: Sebastião da Gama. O seu «Pequeno Poema» é o melhor epitáfio que posso dar, em homenagem, a Frederick Rolfe, o Barão Corvo:

«Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,

não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,

não enlouqueceu ninguém...

P'ra que o dia fosse enorme,

bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...»


Diz Gama que «quando eu nasci, não houve nada de novo senão eu». Atrevo-me a dizer que, em relação ao contributo de Corvo para a literatura, que também ainda não existe nada de novo, senão o dele, desde que ele nasceu.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Festival literário de Wroclaw 2012


Na bela cidade polaca de Wroclaw (pronuncia-se brotswaf), outrora capital da Silésia, ocorreu mais uma edição - a oitava - do Międzynarodowy Festiwal Opowiadania: ou Festival Internacional de Ficção Curta. Consiste num festival literário muito dinâmico e multilingue, em que os diversos escritores convidados, além de participarem em conversas com os leitores, realizam sessões de leitura em voz alta nas quais dão a ouvir as suas palavras nas línguas originais, enquanto é projectada, em simultâneo, uma versão em polaco desses textos. Entre outros autores, a edição deste ano (de 2 a 6 de Outubro) contou com as presenças de Valeria Parrella (Itália), Andrezj Stasiuk (Polónia), Colm Tóibín (Irlanda), além de mim. Para a sessão de leitura em voz alta, interpretei um trecho do meu romance O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010).

Esse trecho, que causou sensação, foi, ainda, publicado na revista literária Opowiadanie.

Deixo os meus votos de agradecimento à direcção (Marcin Hamkalo) e coordenação (Milka Jankowska) do festival, assim como ao Instituto Camões (José Carlos Costa Dias) e à embaixada de Portugal na Polónia. Ainda, um agradecimento especial a Weronica Murek: dziękuję.
     

No centro histórico da cidade, na Rynek we Wrocławiu (Praça do Mercado de Wroclaw).


Lendo um trecho de O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010) no auditório do Teatr Wspólczesny (Teatro Contemporâneo). «Os visitantes cheiravam Lisboa antes de lhe pôr a vista em cima. (...) Um fabuloso odor de "aqui e agora" que ia buscar essências pretéritas, fixadoras dos aromas do presente, para controlar os pensamentos dos lisboetas: o hipocentro da geologia temporal de Lisboa, impressa nas rochas, tijolos e ossos, reverberava sob a forma de lenga-lengas, cantigas estúpidas e orações de esperança. Ninguém, nem sequer um fungo, se dava ao trabalho de aprender alguma coisa com a presença do passado: e a cidade, de quando em quando, dava coices; deitava umas casas abaixo e reorganizava-se - ninguém me usa, clamava merismática.»


«Sob o solo: ruínas de uma grandiosa necrópole romana - o anfiteatro de Morta. Peças misóginas de teatro: "O poderoso Marte clama por Vénus, em segredo, enquanto lava, com lágrimas de mulheres, o seu rosto horrendo." E à superfície? Impermanência. Abortifacientes. Prejuízos post mortem


«Alquimia engendrada nos ventres públicos: respingos brancos em polpas carminas - do excremento à carne. E da carne ao excremento.»


Excepto a policromia, foi num prédio de apartamentos deste feitio que, na sua cidade alemã, Descartes experienciou três visões triunfais - triunfais à maneira "epifernandopessoana" - que mudaram a sua vida e o influenciaram a escrever O Discurso do Método. Tivesse morado em Wroclaw e quantas mais cintilantes visões haveria sonhado?


Wroclaw é conhecida por ser a "cidade dos gnomos": existem imensos, espalhados por todas as ruas e recantos. Apesar de figurarem num "mapa dos gnomos", tenho a ideia de que quem mora na cidade, mesmo há vários anos, ainda não descobriu todos: é um grande desafio.


Nesse sentido, Wroclaw é uma cidade amante da arte escultórica. Nesta imagem estou na antiga rua dos magarefes, que, hoje, é uma das principais ruas artísticas da cidade, cheia de galerias e estúdios de pintura e escultura. O galo faz parte de um conjunto escultórico que homenageia as espécies abatidas para consumo, ao longo dos séculos, naquela rua (imagem seguinte).


Estas lindas estátuas transmitem uma enorme ternura e, ao mesmo tempo, por se encontrarem no final da rua, um surpreendente humor deveras paraprodosquiano.


No mágico jardim botânico de Wroclaw, onde se encontra um magnífico lago com cascata. A serenidade que o local evoca é paradisíaca e lembrou-me, de imediato, a majestosa composição Five Variants of Dives and Lazarus de Ralph Vaughan Williams. Um lugar em que se respira paz e cultura: é um jardim destes que falece à cidade de Lisboa, para parafrasear Francisco D'Ollanda.




Há beleza nos milagres comuns. Para mim, um bom exemplo de um milagre comum é o café - e há muito bom café em Wroclaw: aromático e aveludado. Esta pequena pastelaria no centro da cidade tem uns cadeirões muito confortáveis.


A revista literária Opowiadanie.


Em polaco, O Evangelho do Enforcado diz-se Ewangelia Wisielca.


Apreciação crítica/apresentação do meu trabalho na brochura do programa do festival.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

«A Lua do Loreto» na Biblioteca Municipal Camões


A interpretação de A Lua do Loreto, por David Soares e Charles Sangnoir, na passada sexta-feira, dia 28, na Biblioteca Municipal Camões, durante a apresentação do disco de spoken word «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012).

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

«Os Anormais» na revista LOUD nº 139.

Excelente crítica a Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, de David Soares e Charles Sangnoir (Necrosymphonic Entertainment/raging planet, 2012) na revista LOUD! deste mês.
Podem ouvir e adquirir o disco nesta ligação: http://necrosymphonic.bandcamp.com/album/os-anormais