quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.


«Aqui, a realidade não é a dominada pelos reis, nem a demarcada por racimosos reinos a eles consagrados pelos navegadores pós-medievais, mas a de um vastíssimo continente impossível de cartografar e onde convergem desiguais grandezas de lengalenga e fantasmagoria. Há música aqui, arreigada às vozes destes mortos simultâneos que parecem falar num prolépsico dialecto que soa a preguear de penas e brindes em copos de cristal. E, sobre todos, sobre a estupefacção esperançosa que os anima, está o Sol só deles.


O Sol invicto.

Invicto pelo sarcasmo e pela sordidez, mas também invicto pela violência e pela injustiça. Um Sol perfeito para uma insólita e rutilante ocasião; comburente e, por isso, inapreciável. Olhando para além das mulheres, dos homens e do asno, é possível ver que, como fósseis outrora cativos por grades estratigráficas ainda mais fundas, muitos outros anormais de Lisboa se aliaram à invencível convocação.

Antes dos anormais entrarem novamente em Lisboa, sem terem a certeza de que voltam para ficar, o trofoneurótico Mano das Manas aproxima-se de nós e oferece-nos com amabilidade uma caixinha de papelão pintado: as suas mãos aleijadas são pútridas, consumidas pelos sarcofamintos, mas a caixa resplandece com a luz imensa do Sol Invicto em escalas mais excelsas que as das jóias da Jerusalém Celeste. A pulcritude desse presente é tremenda – chamejante – e espiritualiza-nos os corações.

             Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.»

(De «Sol Invicto» em «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense», spoken word escrito e interpretado por David Soares e musicado por Charles Sangnoir.)