terça-feira, 29 de outubro de 2013

Comentário sobre «Astérix Entre os Pictos»


A capa de Astérix Entre os Pictos, novo livro de banda desenhada da série Astérix, quase resgata do esquecimento o sentimento mágico que os melhores títulos dessa colecção evocam, mas escorrega num pormenor que poderá ser ignorado pelos leitores menos sensíveis às questões relacionadas com o tom que as narrativas devem ter: é um desenho que cai no erro de nos mostrar os Pictos.
Ora, o grande truque dos álbuns de Astérix, em particular daqueles cujas histórias podem classificar-se de "grandes viagens", é, precisamente, nunca desvendar o aspecto e o carácter dos povos que os gauleses visitam - e quando aqueles aparecem nas capas, como em Astérix Entre os Bretões e Astérix na Hispânia, por exemplo, tais figurações frontais não passam de cameos (na maioria, de personagens secundárias), que nada desvendam sobre as características particulares dessas etnias. O facto é que, tal como em Jaws, de Steven Spielberg, em que o tubarão permanece oculto durante quase todo o filme, também as lacónicas capas de Astérix cumprem a função de manter misteriosa e interessante a história. Um caso paradigmático desse modus operandi será, provavelmente, a capa de Astérix e o Caldeirão, com um desenho completamente alegórico - económico, até. Esta opinião poderá parecer insignificante, mas relaciona-se com aquilo que faz as melhores histórias de Astérix serem especiais: uma boa história de Astérix nunca se apoiou em fórmulas e em lugares-comuns - e, de há uns livros para cá, o universo de Astérix transformou-se numa bula farmacêutica na qual estão listados os ingredientes e os efeitos previsíveis que provocarão.
Se os livros a solo de Uderzo inventaram e esticaram perigosamente essa fórmula, ao ponto de rebentá-la (O Pesadelo de Obélix é, na minha opinião, o livro em que se opera esse rebentamento), este novo álbum, escrito por Jean-Yves Ferri e desenhado por Didier Conrad, demonstra que ela está irremediavelmente quebrada: ou seja, nem um par novo de mentes, com algum talento, diga-se, é capaz de regenerá-la, num livro que se lê como se fosse um receituário, com a introdução de quase todos os chavões asterixianos, alguns estribilhados num espaço de poucas pranchas, o que culmina numa irritante saturação "museológica".


Não me perfilo entre os críticos dos elementos "disneyescos", chamemos-lhe isso, que Uderzo introduziu num número cada vez maior nos álbuns recentes, porque eles sempre fizeram parte do mundo de Astérix, como pode ler-se em O Combate dos Chefes, entre outros títulos - mas na escrita de Goscinny, o antropomorfismo nunca passou para o primeiro plano da narração; ou seja, sempre assinalou momentos de humor e de fantasia mais desregrada entre personagens secundárias, nunca interagindo com as principais, criando, desse modo, uma distância que mantinha coerente o cômputo dentro das linhas mestras do universo de Astérix. Podíamos ver, em segundo plano, os javalis a falar uns com os outros (em A Odisseia de Astérix, já com Uderzo a solo) ou os animais da floresta armoricana a assistir às lutas dos gauleses com os romanos, mas nunca víamos os javalis a falar com os gauleses ou os animais a interagir com estes - como na sofrível cena com o golfinho em Astérix e Latraviata. Em suma: o problema está na miscigenação daquilo que eram apontamentos secundários de humor com os elementos da narrativa central, o que quebra a cumplicidade do leitor.
Astérix Entre os Pictos traz para primeiro plano uma espécie de avatar do Monstro de Loch Ness, mas isso era expectável (afinal, está-se na Escócia), embora, neste ponto, me dê vontade de recordar outra aparição de outro avatar do monstro lochnessiano, também numa banda desenhada franco-belga, que, acredito, é muito melhor conseguido: a meio de San António na Escócia, a personagem Béru, ébrio e incompetente inspector que auxilia o comissário San António, diz, com perturbação, ter pescado o célebre Monstro de Loch Hater, mas nem as personagens, nem o leitor acreditam nele até à última vinheta do álbum, na qual o monstro aparece (e numa excelente caracterização, mais espectacular que a de Ferri e Conrad). Dava vontade de ver algo semelhante acontecer entre Obélix e o Monstro de Loch Andloll, ao qual ele chama "lontra": uma hipótese teria sido Obélix passar o álbum inteiro a falar sobre a tal "lontra" que ia vendo no lago para, no final, o monstro aparecer e assustar toda a gente, ficando Obélix sozinho, de braços cruzados e a bater o pé, gozando o facto de se ter "tanto medo de uma lontra". Também teria sido mais indicado que a personagem principal Mac Brasa, o picto que, no início, os gauleses salvam do gelo e levam de volta à sua terra, fosse uma caricatura de um actor escocês famoso nos dias de hoje (como Gerard Butler, por exemplo), o que tornaria satírico (em vez de "revisteiro") o enfatuamento que as mulheres da aldeia gaulesa sentem por ele. São, apenas, duas ideias que poderiam ter elevado a outro nível este Astérix Entre os Pictos que, infelizmente, se esgota em trocadilhos duvidosos e derivativos, em referências tão aleatórias que perdem todo o humor que poderiam ter em circunstâncias melhores e na bola-e-corrente do receituário asterixiano que pesa muitíssimo nos últimos cinco ou quatro álbuns da série.

Astérix Entre os Pictos também ignora a cronologia dos álbuns anteriores: em Astérix e os Bretões, um taberneiro "inglês" alude ao carácter avarento dos caledonianos (escoceses) que, nesse álbum, já estariam num estádio civilizacional um pouco mais desenvolvido que o dos Pictos do novo livro. O whisky também já era conhecido de outros álbuns, por isso a sua descoberta neste título não faz sentido. Reconheço que se trata de um livro humorístico, mas, ainda assim, uma observação histórica mais acertada faria maravilhas à narrativa principal. Em resumo: os pictos não foram os antepassados dos escoceses - foram um "povo" (falar-se em "povos" no que diz respeito a estas eras é sempre conjectural) assimilado pelos invasores Escoceses (do nome romano scoti, derivado de scotia, que significa goteira - uma alusão ao clima chuvoso e frio daquelas regiões setentrionais), que vieram da Irlanda do Norte. Por conseguinte, os actuais escoceses não descendem dos pictos, mas de um cruzamento de (pelo menos) duas etnias: 1) os invasores escoceses que vieram da Irlanda (Hibérnia) e 2) os pictos que assimilaram. Ainda hoje, a língua escocesa retém influências directas do dialecto desses invasores escoceses, o chamado Celta Q* - como a pitoresca palavra mac, que significa filho. O fetiche picto que os escoceses têm é, analogamente ao fetiche lusitano que têm os portugueses e ao fetiche gaulês que têm os franceses, uma mera tentativa romântica de encontrar-se um único povo, quasimítico, que seja antepassado e fonte originária das virtudes de um país, mas de um ponto de vista histórico, científico, ficções dessa natureza não se sustentam, por mais ressonância que repercutam em certos sectores da sociedade. Daí que teria sido interessante se Astérix Entre os Pictos tivesse mostrado esse conflito entre os pictos e os escoceses, injectando humor nas diferenças de dialecto (o hibérnico Celta Q e o "britânico" Celta P), nos costumes dissemelhantes e nas tentativas dos romanos de governar duas etnias ingovernáveis.

Escrevo este comentário por duas razões: porque o material que serve de inspiração ao álbum poderia, como vimos nos parágrafos anteriores, ter sido explorado de uma forma mais rica; e porque se perdeu uma oportunidade de, verdadeiramente, revitalizar Astérix.
A série Astérix tornou-se famosíssima e incontornável pela sua iconoclastia. Está, pois, na altura de quebrar a imagem construída nos últimos álbuns para que estas personagens que todos nós gostamos possam respirar um novo sopro de vida que não cheire a homenagem, muito menos a cliché. Este Astérix Entre os Pictos é um esforço fraco nessa direcção, mas é provável que ela venha a ser alcançada num próximo livro. Seja como for, esta fórmula está gasta, completamente.


* - A designação Celta Q é a corrente, mas, como já escrevi em outras ocasiões, a palavra celta é mal aplicada. Celtas deriva do nome grego keltói, que significa bárbaros ou estrangeiros. Por conseguinte, falar-se em celtas é exactamente a mesma coisa que falar-se em bárbaros. Nunca existiu nenhuma civilização, cultura ou língua celtas: existiram civilizações, culturas e línguas que dessa forma foram apelidadas, nos textos clássicos, para efeito de simplificação. Os celtas nunca existiram.

domingo, 27 de outubro de 2013

Fotos e reflexões do meu 1º fim de semana no Amadora BD 2013


Apresentação de Palmas Para o Esquilo (Kingpin Books, 2013), com o editor Mário Freitas, eu e Pedro Serpa. Palmas Para o Esquilo, escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa, está nomeado para três Prémios Nacionais de Banda Desenhada: Melhor Álbum, Melhor Argumento e Melhor Desenho.









A entrada da minha exposição David Soares: O Acto da Escrita é um Acto de Autor: «David Soares é um autor multifacetado, cuja obra, que explora diversas linguagens narrativas (a prosa, a narrativa sequencial e a palavra-falada), é composta por romances, bandas desenhadas, livros de contos e de ensaios, assim como discos de spoken word. A palavra é o elo de ligação entre estas linguagens narrativas, que, no universo autoral de David Soares, partilham especificidades, permutam possibilidades e celebram o poder iluminante da imaginação. Em bandas desenhadas como O Pequeno Deus Cego, mas também em romances como Batalha e em discos como Os Anormais, o leitor é, sempre, convidado pelo autor a deixar-se transformar, tanto por imagens de Treva como por palavras de Luz. 
David Soares recebeu três troféus de Melhor Argumentista Nacional pelo seu trabalho em banda desenhada e a revista literária Os Meus Livros definiu-o como sendo "o mais importante autor português de literatura fantástica"





Posto de escuta com o meu disco de spoken word Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet 2012), escrito e interpretado por mim e com música e produção de Charles Sangnoir (La Chanson Noire, Karuniiru).


Vitrina com o meu trabalho em prosa.



As caveiras da gruta de Wang, o Castrador, o dragão de O Pequeno Deus Cego, são o Gólgota do 24º Amadora BD. (A concepção cénica e execução da exposição são de Catarina Pé-Curto e Ângela Ribeiro.)







Nesta parede pode ver-se uma amostra do meu trabalho a solo em banda desenhada, com pranchas dos livros Sammahel e A Última Grande Sala de Cinema (Círculo de Abuso, 2001, 2003), escritos e desenhados por mim.







Nas paredes, os visitantes poderão ler impressões dos meus argumentos finais dactilografados, correspondentes aos livros dos quais existem pranchas originais nesta exposição (Mucha, É de Noite Que Faço as Perguntas, O Pequeno Deus Cego e Palmas Para o Esquilo), assim como os meus layouts (planificações das pranchas), que dou aos desenhadores que colaboram comigo para eles seguirem.
Nesta foto, atrás de mim, encontram-se reproduções dos meus blocos de notas com os apontamentos que estiveram na origem de O Pequeno Deus Cego: primeiros esboços de personagens e diálogos e os primeiros layouts pré-argumento dactilografado. Estes layouts pré-argumento dactilografado são a primeira escrita em imagens do livro, antes de serem passados a limpo nos layouts finais pós-argumento dactilografado. No entanto, poderão ver que já correspondem exactamente ao resultado final que se pode ler no livro. Isto acontece, porque, de maneira geral, aquilo que imagino inicialmente nunca se transforma: desde o início que visualizo o livro como um todo; por conseguinte, todas as imagens e sequências que imagino entrosam-se para um desígnio final - tanto na transmissão da mensagem, como naquilo que concerne à transmissão do tom da narrativa. O tom é a voz do livro, paralela à voz autoral. Cada livro tem um tom próprio, que é algo muitíssimo delicado de capturar e, ainda mais, de manter.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Caetera desiderantur: centenário da morte de Barão Corvo

A obscura obra literária de Frederick Rolfe (o apelido deve pronunciar-se Rofe, como o autor preferia), autodenominado Barão Corvo, pode (para efeito simplificativo) classificar-se como sendo um synallagmatikós entre o romance histórico e a autobiografia; porém, a ficção autobiográfica de Corvo não possui nenhum grau de parentesco com aquelas ficções interinsulares sobre escrevinhadores que lutam contra hipsobatimétricos bloqueios criativos, sempre desfeitos no último momento do prazo de entrega do texto por alguma inspiração que musos providenciais lhes insuflam quase por acidente. De facto, em romances como Nicholas Crabbe: or, The One and the Many, escrito, provavelmente, em 1904, mas somente publicado em 1958, e na sua sequela The Desire and Pursuit of the Whole, escrito entre 1909 e 1913, mas apenas publicado em 1934, é mostrado ao pormenor o dia-a-dia loxodrómico deste autor que, mesmo morrendo de fome nas ruas de Londres e Veneza, nunca deixou de trabalhar que nem um "taylorista" nos seus manuscritos, por ele caligrafados e encadernados com requinte - na verdade, poucas vezes uma palavra poderá ser tão bem aplicada como neste caso, pois caligrafia significa escrita bela (ou estilo admirável, se quisermos ser um pouco mais poéticos) e a letra de Corvo é belíssima, sempre desenhada com cores incomuns.

Nessa actividade maníaca é sedutor ver-se a herança rigorosa dos monges miniaturistas medievais, até porque Rolfe nunca aceitou o facto de lhe ter sido recusada uma carreira eclesiástica no seio da igreja católica: antes de ser escritor (e pintor e fotógrafo), apenas quis ser padre, mas foi, prematuramente, expulso do Scotts College de Roma, onde estudava os preceitos sacerdotais. Privado de ingressar num ofício sagrado, Corvo atravessou uma espécie de processo teantrópico: ou seja, do Divino para o Humano - do sacerdócio para a criação artística, entenda-se. Pioneiro da fotografia a cores e subaquática, foi nas letras que revelou ser um artista de elevada qualidade, criando desde cedo um estilo autoral distinto, mas incompreendido pelo grande público em virtude da sua ornamentalidade, que mescla referências clássicas, trechos compostos em latim e grego (sem tradução), uso de um verbomaníaco vocabulário, pejado de palavras crípticas e neologismos, mas, sobretudo, remordente no imperdoável ferrão com que espicaça os seus adversários. Melhor que ferrão: pinças!, pois o caranguejo foi seu signo zodiacal e avatar (a personagem Nicholas Crabbe é a corporização mais reconhecível). Mas, em italiano, a palavra corvo significa, gulosamente, escritor de cartas anónimas - geralmente, as verrinosas. O poeta Wystan Hugh Auden apelidou Rolfe de «mestre da vituperação», aludindo às famosas cartas (não-anónimas) com que este esfiapava os seus adversários do meio literário, da alta sociedade e da ICAR.

O estilo erudito e arisco às estruturas convencionais de enredo plasmado nos seus romances e a visibilidade catacáustica que estes foram reunindo ao longo das suas provisórias publicações têm afastado o Barão Corvo de gerações de leitores que, hoje, mais do que ontem, talvez não possuam as chaves necessárias para decifrá-lo. O mundo literário tarda em reconhecê-lo, em parte porque Corvo não teve campeões da crítica: é, sobretudo, um escritor que é lido e admirado por escritores - quando é lido, de todo.
Enquanto conhecedor e admirador da obra de Corvo, sublinho que ela se encontrava muito à frente do seu tempo, na hábil concatenação de modos diversificados de escrever: como o (autêntico) romance histórico e a ficção biográfica, que já citei, mas, também, prolepticamente, o romance neológico "joyceano" ou "proustiano". Autónoma à adversidade que o animou contra a igreja católica, enquanto instituição, a fé que professou foi intensa, mas esta nunca influíu sobre a sua obra literária: nenhum romance de Corvo apresenta as ideias de perdição e de perdão que podem ler-se nos redentoristas romances "católicos". Também não foi um decadentista, embora a sua obra toque tangencialmente nessas temáticas. Em maior espessura, Corvo poderá inscrever-se na mesma família de autores autobiográficos, como Thomas De Quincey - ou George Gissing, autor do pungente New Grub Street, que, nem de propósito, partilha proeminências com o mundo de Nicholas Crabbe: em ambos os títulos, é descrita a difícil vida dos escritores eduardianos e, em ambos, os desfechos são terríveis, embora em Nicholas Crabbe se sublevante uma maior sinistralidade, porque personagem e autor se encontram aí separados por uma membrana muito mais transparente que em New Grub Street. E isto é dizer muitíssimo, porque o final de New Grub Street é um dos mais dispépsicos que já li.
Passados cem anos após a sua morte, Corvo e a obra que deixou permanecem excêntricos - no sentido de fora do centro. Dificilmente poderia ser de outra forma: hoje, para ter sucesso, basta estar onde está o mercado - e, para isso, ser-se bom não interessa nada, quando não consiste, até, num obstáculo.

A maioria das biografias existentes sobre Frederick Rolfe (são apenas quatro - e uma foi publicada no passado mês de Abril) insistem em vê-lo como um verrinista que injustiçou aqueles que, no fundo, até o quiseram ajudar, mas observando com atenção as informações factuais e as correspondências que chegaram até nós é flagrante que Corvo estaria, de facto, nas listas negras de algumas publicações, editoras e até de certas esferas católicas. O seu feitio frontal e a intolerância que tinha à mediocridade facilmente o faziam cair em desgraça diante dos bonzos da altura. Fascinado pela sua queda, o biógrafo A. J. A. Symons compôs em The Quest For Corvo um retrato empático, ainda influente, mas algo pseudoepigráfico - faz-me lembrar a biografia de Fernando Pessoa escrita por João Gaspar Simões, que até é uma leitura empolgante, mas nubivagante. Robert Scoble, autor de Raven: The Turbulent World of Baron Corvo, beneficia de informações mais apuradas e corrigidas, mas, ainda assim, desenha um perfil psicológico assente na crença de que o autor de Hadrian The Seventh sofria de um transtorno de personalidade paranóide, para o qual não existia medicação.
Com maior ou menor razão para isso é sempre tentador ver sinais de doença mental no comportamento dos artistas, porque dessa maneira o seu carácter único - que o têm - excresce de uma deficiência e não do génio. A verdade é que os homens pequenos não gostam dos homens grandes - se estes forem doentes, encontrar-se-ão mais próximos da pequenez daqueles. É possível que Rolfe padecesse de paranóia - ou até de transtorno de personalidade limítrofe, sabemos lá -, mas eu acho que aquilo que o atormentava e que, concomitantemente, o levava à depressão, era o simples facto de ter plena consciência de que era um gigante entre anões; era o simples facto de, por culpa desse isolamento intelectual, ter de tolerar, consentir, deixar passar, o comportamento, a boçalidade e a deslealdade de homens de menor qualidade.

Poucos escritores declararam a sua admiração por Corvo: Ronald Firbank, Evelyn Waugh, Graham Greene e Alexander Theroux serão, provavelmente, os casos mais conhecidos - e entusiastas. Descobri a obra de Rolfe com o romance Hadrian The Seventh, publicado em 1904, que tem como protagonista outro avatar corvino: a personagem George Arthur Rose, amigo de Nicholas Crabbe, que, numa reviravolta inesperada, é eleito Papa. Há poucas linhas escrevi que Rolfe passara por um processo teantrópico e, na verdade, o Humano que encontrou ao descer do Divino foi ele próprio: Rose, ou Hadrian VII, não perde tempo com assuntos espirituais, como os Papas comuns; antes prefere moldar "maquiavelicamente" os assuntos seculares (e é bom que haja tabaco suficiente até o mundo ser refeito à sua imagem). Aquilo que me atrai na obra de Rolfe é a sua omnivagância, a sua visuriência, o sentimento libertador de que se está a ler um autor que não está preocupado com mais nada a não ser a indulgência de imergir-se completamente no seu próprio mundo.
Este texto, publicado neste dia, é a minha contribuição para que se mantenha viva a memória e a obra deste criador único, que, como poucos, foi movido por um fogo interior de uma enormíssima resistência.    

Frederick Rolfe, o Barão Corvo, morreu em 25 de Outubro de 1913, num quarto do hotel Palazzo Marcello, à beira do Grande Canal, em Veneza. Conseguira convencer o dono do hotel a dar-lhe, finalmente, guarida, depois de passar meses a dormir na rua, onde contraíu bronquite e foi constantemente mordido por ratazanas. No entanto, nunca deixou de escrever e, ao falecer, deixou terminado mais um romance: The Desire and Pursuit of the Whole - um título aristotélico que dá o sopro de vida a uma espécie de sequela, com final feliz, de Nicholas Crabbe. Mas Corvo não teve um final feliz. Morreu sozinho, ignorado e sem ver a sua obra reconhecida. Está sepultado no cemitério veneziano de San Michele e serão pouquíssimos aqueles que o visitam.
Todos os homens morrem sozinhos - mas existem alguns que têm tanta solidão dentro deles que morrem mais sozinhos que os outros. Caetera desiderantur - ainda falta o resto.
A verdade é que ainda falta o resto todo.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Entrevista em duas partes


À aproximação do Amadora BD, dei uma grande entrevista (em duas partes) para o blogue sobre banda desenhada Acalopsia.

A tónica desta entrevista é colocada sobre a minha faceta de autor de BD, mas também se aproxima de outras, como verão.
É uma entrevista onde falo pela primeira vez sobre uma série de questões, por conseguinte é de todo o interesse para os meus leitores.

 
 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

«Palmas Para o Esquilo» nomeado para três Prémios Nacionais de Banda Desenhada


Palmas Para o Esquilo (Kingpin Books, 2013), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa, está nomeado para três Prémios Nacionais de Banda Desenhada:

- Melhor Álbum Português
- Melhor Argumento Para Álbum Português
- Melhor Desenho Para Álbum Português

Os vencedores desta edição dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada, atribuídos pelo Amadora BD, serão conhecidos no dia 2 de Novembro.


 


Exposição e autógrafos no 24º Amadora BD


Na próxima sexta-feira 25, abrirá ao público a vigésima quarta edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora - ou Amadora BD - no Fórum Luís de Camões. Este festival terminará no dia 10 de Novembro.

Este ano, os meus leitores poderão ver uma grande exposição dedicada à minha obra em banda desenhada, intitulada David Soares: O Acto da Escrita é Um Acto de Autor.
Esta exposição especial consistirá numa viagem pelo meu processo de criação de BD e nela ver-se-ão vários materiais referentes a diferentes etapas desse processo: desde apontamentos e esboços pré-argumentos dactilografados, passando por layouts (planificações pormenorizadas que faço de cada prancha) de diversos livros de banda desenhada que escrevi - como É de Noite Que Faço as Perguntas (Saída de Emergência, 2011. Desenhos de Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel Silverstre da Silva e Richard Câmara), O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books, 2011. Desenho de Pedro Serpa) e Palmas Para o Esquilo (Kingpin Books, 2013. Desenho de Pedro Serpa) - até, claro, os argumentos dactilografados, disponíveis para leitura.
De igual modo, estarão expostas pranchas originais de diferentes bandas desenhadas que escrevi, desde Mucha (Kingpin Books, 2009. Desenho de Osvaldo Medina e arte-final de Mário Freitas) até Palmas Para o Esquilo, assim como pranchas originais dos livros Sammahel (Círculo de Abuso, 2001) e A Última Grande Sala de Cinema (Círculo de Abuso, 2003) que escrevi e desenhei - evocando, desta forma, o período a solo da minha carreira na BD, para surpresa de leitores mais recentes que, provavelmente, ignorem que eu também desenho.
Todos os livros supramencionados estarão disponíveis para leitura na exposição.

Apesar da tónica ser colocada na minha obra em banda desenhada, mais surpresas, alusivas a outras facetas do meu trabalho, irão marcar presença; entre as quais um posto de escuta onde os visitantes da exposição poderão ouvir o meu segundo disco de spoken word Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), que conta com produção e música de Charles Sangnoir (La Chanson Noire, Karuniiru). Os textos dos capítulos deste disco também estarão disponíveis para leitura. Quem me acompanha desde os primeiros anos lembrar-se-á que o meu primeiro disco de spoken word foi lançado em 2002 e intitula-se Lisboa, contando com produção e misturas de Fernando Matias (F.E.V.E.R., Mourning Lenore). 
David Soares: O Acto da Escrita é Um Acto de Autor será, no fundo, uma oportunidade única para o público, no geral, e para os meus leitores, em particular, descobrirem com maior profundidade um pouco dos bastidores de algumas facetas da minha obra, que faz treze anos de publicação ininterrupta.

Também estarei presente no Amadora BD para assinar exemplares dos meus livros, entre os quais o novo Palmas Para o Esquilo. Os dias e as horas em que poderão encontrar-me na zona dos autógrafos são os seguintes:
- Sábado 26 de Outubro, das 17H00 às 19H00
- Domingo 3 de Novembro, das 16H00 às 18H00
- Sábado 9 de Novembro, das 16H00 às 18H00

Vemo-nos por lá.



quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Diário Plutónico #2: O Gato Que Tinha Estrelas


O rabo do gato preto e branco mete respeito: inteiriçado como um ponto de exclamação, lustroso como orleã, não é uma cauda verdadeira, mas uma lembrança do nascimento do universo.
No princípio era o miado!
Um miado assertivo.
Birrento.
Um miado primitivo que pôs a poeira estelar em marcha – o miado divino.
Soou há pouco tempo, quando a Grande Mãe Gata teve uma nova ninhada. Dar à luz universos cansa, porém os gatinhos têm toda a energia – toda a que existe e que alguma vez existirá.
O nosso gato preto e branco, de cauda alçada, coça-se: este felino cosmogónico não tem pulgas, mas estrelas – polvilhadas pela pelagem lorigada e coruscantes como corindo em pó. Uma pata risca essa escuridão, faiscando um cometa sob a abóbada extramundana, feita de pêlo, e a comichão fulgente mergulha no mar como um ex-voto extinto. Saibam que é quando os gatinhos pretos e brancos andam no encalço das suas estrelas, com as garras e com os dentes, que nascem todas as estrelas cadentes.
Os sábios sabem que o universo está em expansão, mas desconhecem a razão.
É porque ele é um gato preto e branco que enfuna o pêlo para parecer maior… É um universo bebé, o gatinho, e na sua pequenez encontra-se a grandeza do Todo: planetas, meteoritos e constelações – borboletas, manuscritos e tubarões.
Que nome tem, este hipnopompo? O único que lhe serve: Plutão. Repousa (como lousa) num volume de velo venusto. Empandeira o rabo – pompadourante –, chilreando, longitroante.

sábado, 12 de outubro de 2013

Gravitas


Acho que Gravidade, de Alfonso Cuarón, é um bom filme, mas não fui capaz de emocionar-me como esperava. Para começar, o argumento é quase inexistente e a maioria dos diálogos só existe para preencher o silêncio sepulgrave do cosmos: ainda no preâmbulo da provação que se seguirá, a personagem interpretada por George Clooney alerta a personagem interpretada por Sandra Bullock sobre a conveniência de estar-se sempre a falar, mesmo que não se diga nada de concreto, de modo a que a estação terrena da NASA dê pelas suas presenças. E, com efeito, a maioria dos diálogos surge somente como um farol que vai piscando no meio do breu, embora, na minha opinião, isso não seja o maior problema do filme, porque, desde o início, somos levados pela mão com inegável mestria por uma história de pura sobrevivência, na qual a própria sobrevivência, num ambiente ultra-hostil, é, sem decorações, o único móbil. Mas, nesse sentido, o filme deveria assumi-lo sem complexos: ou seja, a haecceitas de Gravidade é, sem dúvida, a luta pela vida travada pela cosmonauta corporizada por Bullock que, ultrapassando o velho tropo do "homem (ou da mulher) contra o mundo", surge como alguém que precisa de derrotar o universo. Escreveu Catão-o-Velho, «rem tene, verbas sequentur» («agarra o tema e as palavras seguir-se-ão»), mas, em específico, o tema da sobrevivência solitária não precisa de palavras. Talvez não sejam os exemplos ideais de comparação para este caso, mas filmes como Few of Us (1996) de Sharunas Bartas ou Mãe e Filho (1997) de Aleksandr Sokurov já demonstraram como o silêncio pode ser tão conducivo da contemplação como inquietante e aquilo que falta a Gravidade é, sobretudo, inquietação. No seu quasi-hibridismo entre o ficcional e o documental, o filme de Cuarón falha em inquietar o espectador, constantemente posto fora do filme por culpa dessa indecisão que rompe toda a cumplicidade, e, por ironia, o momento mais perturbador dos seus noventa minutos de duração passa-se na Terra.
A duração do filme é, de facto, outro problema: Gravidade precisava de mais espaço - e isto não é nenhum trocadilho. Porém, é possível que o público contemporâneo não esteja preparado para fôlegos "kubrickianos", porque aos primeiros minutos do "longo" plano de sequência do início dei por mim a ouvir murmúrios de impaciência de outros espectadores - a montagem frenética dos vídeos musicais que foi transposta para o cinema na segunda metade dos anos noventa do século passado formatou toda uma geração à velocidade vertiginosa do teledisco e do videojogo, obrigando muitos realizadores a caminhar cada vez mais nessa direcção. À luz disso, este esforço de Cuarón até é heróico, contextualizado no espectro do cinema norte-americano, produzido pelos grandes estúdios: será, provavelmente, o filme-contemplativo possível, hoje em dia... Aliás, Cuarón é um cineasta de grande calibre: falando em planos de sequência, recorde-se o exemplo notável de equilíbrio de tempo e de espaço, e muitíssimo bem interpretado por Clive Owen, que pode ser visto perto da conclusão de Os Filhos do Homem (2006). De igual modo, Bullock e Clooney (ambos capazes da pior canastrice) são exemplares na composição das personagens semi-unidimensionais que lhes são dadas, granjeando sem dificuldade a nossa empatia, ficando provada a qualidade de Cuarón como director de actores.
Feito com o rigor científico possível (contornando-o quando este poderia tornar-se um obstáculo à própria linguagem do cinema, porque, no espaço, aquilo que apelidamos de "senso comum" não existe e seguir a realidade resultaria num espectáculo bizarro para o espectador), suportado por interpretações desarmantes e filmado com muita arte, Gravidade é o filme que eu ansiava por ver há bastante tempo (sóbrio, maduro, inteligente), mas, ainda assim, é demasiado curto e circunspecto para que brilhe todo o potencial que encerra, o que é uma pena. No entanto, para quem achou que Avatar, de James Cameron, foi um fiasco de filme (eu acho que Avatar é péssimo), Gravidade será o colírio certo: eye candy de elevadíssima qualidade, embora servido com um inesperado sentido de discrição.
  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

'Fan art' de «O Pequeno Deus Cego»?


Este graffiti pintado numa parede da estação de caminho-de-ferro de Santarém será um retrato de fan art do dragão Wang, o Castrador, personagem do livro de banda desenhada O Pequeno Deus Cego, escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa (Kingpin Books, 2011)? 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Morto há cem anos: Barão Corvo


No próximo dia 25 deste mês far-se-ão cem anos desde a morte de Frederick Rolfe, o autodenominado Barão Corvo, um dos meus heróis literários e um dos mais extraordinários ourives de palavras que já existiram. Será, infelizmente, uma efeméride que passará despercebida, porque Rolfe é um escritor desconhecido pela maioria, somente lido e apreciado por um grupo (muito) restrito de conhecedores. Rolfe morreu pobre, numa altura em que vivia nas ruas de Veneza, e encontra-se sepultado no cemitério da pequena ilha de San Michele. Já escrevi várias vezes sobre a minha admiração por este autor (nesta ligação, por exemplo), que, mesmo sem tecto e possuindo apenas a roupa que trazia vestida, nunca deixou de escrever e ainda foi capaz de deixar completo um último romance antes de perecer (The Desire and Pursuit of the Whole). Poucos anos após a morte, o Barão Corvo quase caiu no esquecimento, mas é com alegria que declaro que faço parte dos leitores pertinazes que não deixam morrer a sua obra. Por conseguinte, prometo escrever algo especial para celebrar o centenário da morte de Corvo no próximo dia 25.