terça-feira, 27 de maio de 2014

Uma herança da Europa: breve observação sobre o ressurgimento extremo-direitista



Em vez de ressurgimento da extrema-direita europeia, denomino de ressurgimento extremo-direitista europeu os êxitos alcançados por partidos anti-europeus nas passadas eleições europeias, porque não existirá, de facto, uma extrema-direita europeia unívoca, homogeneizada numa ideologia e num programa político circunscritos, mas uma panóplia de diferentes resistências ao projecto europeu e à globalização, classificáveis como sendo de extrema-direita. Com efeito, o ingrediente comum e conglutinante de todas essas forças será, em maior espessura, a recusa do referido projecto europeu; alavanca pela qual se guindaram à própria estrutura do parlamento europeu e dentro do qual esperam arruiná-lo. Propinadas pelo desprendimento, pela permissividade e, em alguns casos, pela cumplicidade das democracias, as forças extremo-direitistas europeias mais perspicazes e melhor financiadas aprenderam a instrumentalizar a própria democracia para os seus fins antidemocráticos.

Embora sejam herdeiras dos movimentos reaccionários de massas europeus que deram abrigo a alguns dos piores crimes de guerra e crises sociais do século XX, como o fascismo e o nacional-socialismo, estas novas forças extremo-direitistas europeias não são, no todo, idênticas aos seus antepassados epistemológicos. Pressurosamente arvoram esses antecessores em jeito de legitimação ou como marketing de choque para satisfazer apoiantes e financiadores mais radicais, mas fazem-no de maneira sincrética e puramente propagandística: é que a memória dos crimes de guerra e dos horrores sociais perpetrados pelas forças extremo-direitistas europeias da primeira metade do século XX são, ainda, a única membrana que impede as forças extremo-direitistas europeias contemporâneas de invadirem os órgãos centrais; razão pela qual, nimiamente, elas procuram alvos retóricos mais ou menos consensuais nestes novos tempos de carestia de vida.
Agarrando o modelo plasmado pela chamada Nouvelle Droite, em finais da década de setenta do século passado, as forças extremo-direitistas europeias contemporâneas compõem um rol de partidos ideologicamente conservadores, de pendor antiglobalizante, eurocépticos e xenófobos que, paulatinamente, penetraram no espaço político europeu – às vezes, até nos parlamentos de diversos países – brandindo um discurso populista anti-imigração, cuja tónica impressa na segurança e na defesa da nação tenta obscurecer os reais motivos de intolerância etnocêntrica que o inflama. Nessa lista de partidos europeus extremo-direitistas contam-se, entre outros, a Deutsche Volksunion e os Republikaner alemães, o Vlaams Belang belga, o Dansk Folkeparti dinamarquês, a Lega Nord italiana, o Fremskrittspartiet norueguês, o Schweizerische Volkspartei suíço, a Front National francesa, o Partido Nacional-Renovador português e o UK Independence Party inglês. São, classifique-se assim, uma vaga extremo-direitista europeia dissemelhante daquela que se materializou no período imediato à segunda grande guerra, encabeirada por associações de assumida continuidade fascista e nacional-socialista – como o Movimento Sociale italiano e o Sozialistische Reichspartei alemão. É, aliás, a partir das criações de organizações deste tipo que se quadra a decomposição dessas ideologias extremo-direitistas europeias, fibriladas por grupos como a Union de Défense des Commerçants et Artisans francesa, o Nationaldemokratische Partei Deutschlands alemão e o Boerenpartij holandês, por exemplo, e se verifica o surgimento de divergências mais fundas que sobraçam novas realidades continentais, como a islamofobia, o discurso anticapitalista, a rejeição da moeda oficial da União Europeia e a abolição do Acordo de Schengen. De todos os partidos europeus extremo-direitistas contemporâneos é provável que o mais influente seja a Front National francesa, cuja cabeça histórica, Jean-Marie Le Pen, advogou há cerca de cinco dias o uso do vírus hemorrágico ébola para “resolver definitivamente a questão da imigração”, sentença que merece ser cotejada com a vitória deste partido, liderado pela sua filha mais nova, Marine Le Pen, nas passadas eleições europeias em França ou seja, essa declaração lamentável não se terá traduzido em perda de eleitores.

No fundo, o programa político das forças extremo-direitistas europeias contemporâneas é, somente, a exploração, pela via da volatilidade, de fragilidades e de fracturas sociais, sejam elas quais forem em determinado momento, preenchendo continuamente, mas nunca completamente, essa espécie de vazio deixado à direita pelos movimentos reaccionários de massas europeus do século passado. Assim como a negação do holocausto tem como objectivo principal reabilitar o nacional-socialismo na praça pública, os novos partidos europeus extremo-direitistas constroem muitas vezes uma imagem publicitária que repele o rótulo de extrema-direita, sublinhando que, não sendo de direita nem de esquerda, estão para além do sistema (como pode ouvir-se, tantas vezes, na propaganda do partido grego neo-nazi Aurora Dourada e na propaganda do partido húngaro neo-nazi Jobbik, que se descrevem como sendo patrióticos e não como sendo de extrema-direita). Com efeito, residirá aqui um dos principais pólos de atracção destas organizações para o eleitorado que se identifica com elas: o facto de se apresentarem como partidos anti-sistema, estratégia que se serve da ubíqua descrença pública na capacidade de representatividade democrática dos partidos políticos. A família extremo-direitista europeia apela ao voto das massas, transfiguradas para efeito retórico em povo soberano, mas desrespeita-as quando, propositadamente, confunde democracia com oclocracia no seu palavreado antidemocrático e anti-sistema – algo que, infelizmente, não parece ser evidente para os seus eleitores. A verdade é que, hoje, a poucos anos de distância dos primeiros centenários das criações do fascismo e do nacional-socialismo, estas ideologias contra-revolucionárias de massas tornaram-se algoritmos universalmente aplicáveis que não dependem, de modo algum, de condições análogas aquelas que serviram de parteiras aos seus nascimentos para medrarem novamente. As organizações extremo-direitistas europeias da primeira metade do século XX respigaram elementos do Antigo Regime monárquico-absolutista e de movimentos contra-revolucionários, como o nacionalismo católico e o anti-parlamentarismo. As novas forças extremo-direitistas europeias não só não abandonaram essa matriz, como a transformaram sob a estratégia de uma procura de legitimação pelo sufrágio e através da liberdade de expressão: são autênticos cavalos de tróia infiltrados no espectro político. Sabotadores da democracia.

São, também, uma herança da Europa, é preciso lembrar. Se, infelizmente, crescerem da sua presente marginalidade e contribuírem para dissolver o actual projecto europeu isso consistirá em mais uma dissolução violenta da Europa por si mesma; em mais uma manta de retalhos de novos estados desfeitos para ser outra vez remendada de diferente feitio num futuro mais ou menos distante. À medida que outras sociedades ocidentais e não-ocidentais se desenvolvem e enriquecem sem agência europeia, a Europa corre o risco, não de tornar-se um grande museu, como tem sido pugnado com mais nostalgia do que ironia por alguns adivinhos da desgraça, mas num gueto de fratricidas enclausurados pela prosperidade e cupidez dos seus vizinhos. Não seria nenhuma novidade.