quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Contracultura satânica e feiticeira na revista LOUD! de Setembro


No número de Setembro da revista LOUD!, quase a chegar às bancas, assino um pequeno ensaio histórico sobre o fenómeno da contracultura satânica e feiticeira ocidental, partindo do imaginário lírico e musical da banda de capa, os Electric Wizard - grupo que, para esta edição, deu uma excelente entrevista conduzida por Ricardo S. Amorim. Além desse texto, deixo cinco sugestões contraculturais, relacionadas com a banda de Dorset e com o imaginário satânico e feiticeiro que interrogo com rigor no ensaio.

Este ano, a rentrée é endiabrada - e conta com todos na apresentação deste número da LOUD! no fórum da loja FNAC do Centro Comercial Vasco da Gama, no próximo dia 9, às 18H30. Lá estarei para dois dedos de conversa. Agradeço a divulgação.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Monstruosidades contra a língua portuguesa


O infame AO90 (Novo Acordo Ortográfico) está a abrir precedentes para que outras mentes imaginem protocolos ainda piores, porque, aparentemente, ele não foi suficientemente longe na "simplificação" da língua portuguesa: neste caso, o Movimento Simplificando a Ortografia, idealizado e encabeçado pelo professor brasileiro Ernani Pimentel (na imagem), que intenta substituir na teoria e na prática o AO90 por um programa que, entre outros objectivos, quer abolir o hífen, a letra h (no início das palavras), as letras ç, ch e os dois ss, assim como transformar em j todos os g seguidos de e ou i (assim, passar-se-ia a escrever ferrujem e jenjiva, por exemplo), para ir ao encontro desse desiderato, almejado pelo próprio senado brasileiro que quer dar vida a este monstro até 2016. Além de que casa também se poderá escrever com z, segundo diz Pimentel nesta entrevista dada ao jornal brasileiro Zero Hora e transcrita no site ILC Contra o Acordo Ortográfico:


 Se burros houvesse que a zurrar conseguissem criar novos acordos ortográficos, este seria, em definitivo, o arquétipo de todos os acordos aberrantes, pois nenhum ser racional será (até ver) capaz de alcançar tão elevados graus de demência e abjecção.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Sadomasoquismos novos e velhos

 
Ao abrigo da temática tortural, iniciada com a publicação anterior, abro um pequeno intermezzo tragicómico para comentar o nádir em que, mais uma vez, se escava a cultura popular, qual escaravelho coprófago, em busca de húmus ainda mais fétido; desta feita, com a estreia anunciada para breve (Fevereiro de 2015) do filme sadomasoquista 50 Shades of Grey, adaptação cinematográfica do pasquim pseudoporno cozinhado sem gosto e sem requinte pela maître de cuisine inglesa Erika Leonard James: originalmente uma receita que consistia numa fanfiction da tetralogia Twilight de Stephenie Meyer. O trailer já disponibilizado é uma explosão de cabotinice como há muito não se via, pelo simples facto de se querer levar totalmente a sério. O filme erótico será sempre, por natureza, um produto saloio: o género pornográfico é mais honesto e, às vezes, um barro esteticamente mais interessante para se moldar (as experiências cinematográficas de Catherine Breillat, Lars Von Trier, entre outros, vêm à memória), embora também se esgote em si mesmo nas suas evidentes limitações. No entanto, aquilo que provoca maior estupefacção em objectos da estirpe de 50 Shades of Grey é um certo discurso invisível que transmitem, segundo o qual vêm quebrar com pompa e circunstância todos os tabus erguidos diante da sexualidade por uma sociedade bafienta e timorata. Apresentam-se como campeões da liberdade (e da libertinagem). Ora, isto não podia estar mais longe da verdade: filmes e livros como 50 Shades of Grey não só se inserem na esteira de uma longa tradição de obras populares pornográficas, como, ainda por cima, perdem na comparação com estas no que concerne à malandrice e à perversidade.

Nem sequer vale a pena ir buscar os exemplos mais conhecidos - e mais escabrosos. Recupero umas transcrições de um curioso opúsculo que, infelizmente ou felizmente, tem andado um bocado esquecido, autorado em 1799 pelo frade oratoriano Teodoro de Almeida e intitulado Elogio da Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Ana Xavier de Assis Mascarenhas, Baronesa de Alvito e Condessa de Oriola. Esta narrativa conta como a referida senhora «ocultava ao seu ilustre esposo as penitências que ela fazia» e que consistiam em «tomar disciplina na companhia de umas devotas mulheres», em usar «frequentemente de cilícios de ferro e nos seus tenros e ainda bem delicados membros os apertava com estranha crueldade». Mas há mais: «havendo de fazer uma jornada a cavalo levava o cilício cingido na cintura: e usava dele nas circunstâncias em que esta penitência era mais penosa...» [leia-se, quando estava grávida]. A luxúria masoquista da baronesa-condessa não ficava por aqui: «quando se lhe descobria e tirava o instrumento das frequentes disciplinas, inventava outras das quais ninguém suspeitou o ministério para que se deputavam, tomando com eles novenas de disciplinas de sangue». Embriagado de embevecimento, Teodoro de Almeida expõe ainda que a baronesa-condessa «usava de uma pequena tenaz de ferro, que com os dentes agudos prende onde a largam por causa de uma mola, que continuamente força» e ainda que havia um outro instrumento do qual ela «se valia com muita frequência, buscando de propósito partes onde a sensação fosse mais delicada». A nossa baronesa-condessa setecentista faz engolir em seco as personagens de
50 Shades of Grey, com a vantagem acrescida que, na sua situação, a figura de poder é ela: sozinha ou entre as tais «devotas mulheres». Ou seja: o relato do oratoriano Teodoro de Almeida consegue ser mais feminista e subversivo que as fantasias ingénuas com que sonham as Anastasias Steeles contemporâneas, desejosas de encontrar uns Christians Greys que lhes abram as portas das suas câmaras secretas das dores prazerosas (basta ver o trailer do filme para entender o que isto é).

Os únicos tabus que filmes e livros como
50 Shades of Grey vêm quebrar são os da ignorância, quando alguém (como eu fiz agora) olha para o passado e diz nihil novi ub sole.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Sobre instrumentos medievais e modernos de tortura


Neste momento, no Edifício da Alfândega do Porto, o público pode ver mais uma das exposições de ditos objectos e mecanismos medievais e modernos de tortura, usados, alegadamente, entre outros organismos, pelas inquisições. Exposições desta natureza são frequentes e eu já visitei muitas, em Portugal e no estrangeiro: todas muito parecidas - algumas até davam a ideia de apresentarem as mesmas colecções, com um punhado de peças diferentes, consoante os locais de mostra ao público. O problema destas exposições - que são um excelente entretenimento, para quem aprecia a temática tétrica (eu, sem dúvida, que aprecio) - é que fortalecem e divulgam continuamente ideias erradas sobre a história medieval e a história das inquisições. A verdade é que a maioria dos comuns instrumentos medievais e modernos de tortura que preenchem o imaginário popular, graças a este e outros tipos de veículos de entretenimento, NUNCA EXISTIRAM: são absolutamente FALSOS.

Nunca - NUNCA - existiu a Dama de Ferro, a Pêra de Tortura, a Cadeira Inquisitorial (que ilustra o anúncio da exposição) e tantos outros artifícios angustiantes. As inquisições nunca os usaram para extrair confissões. De facto, aquilo que o público pensa que sabe sobre tortura inquisitorial ESTÁ ERRADO. Sim, as inquisições torturavam indivíduos para extrair confissões - e detinham engenhosos estratagemas legais para que as sessões de tortura de um determinado indivíduo se pudessem repetir (isto, porque de acordo com os regimentos cada indivíduo só podia ser torturado uma vez) -, mas somente usaram dois métodos: a polé e o potro - métodos que não vertiam sangue, porque as inquisições estavam proibidas de verter sangue.

As torturas na polé e no potro estavam muitíssimo longe de ser arbitrárias: eram reguladas com rigidez por um conjunto intrincado de correspondências entre a solidez das suspeitas e a gravidade das acusações, sendo que a cada sessão de tortura era atribuído um grau em especial; por exemplo, um indivíduo podia ser sentenciado a uma tortura de grau três no potro, o que corresponderia, somente, a que tivesse as cordas amarradas no corpo sem que estas fossem apertadas. Na maioria das vezes, os acusados eram condenados a, simplesmente, olhar para os instrumentos de tortura - o que, quase sempre, resultava em confissões (verdadeiras ou inventadas). A tortura na polé era, de certa forma, mais violenta: quem não teria hipótese de aguentá-la (um médico avaliava sempre o estado de saúde dos acusados antes das sessões de tormento) era condenado a ser torturado em grau equivalente no potro. Não estou a branquear as inquisições: isto é a mais pura verdade histórica e todos estes factos podem ser comprovados. As torturas no potro e na polé eram terríveis, que isso fique retido, e os indivíduos podiam ficar estropiados para o resto da vida, mas a lenda negra do sadismo inquisitorial, tal como é veiculada pela indústria cinematográfica e por exposições como a que serve de mote a este artigo, é uma completa e desavergonhada ficção.

Os falsos instrumentos medievais e modernos de tortura foram inventados nos séculos XVIII e XIX por alguns antiquários e outros brincalhões, provavelmente com a intenção de titilar as audiências e lucrar com a sua exposição: em pleno decurso do Iluminismo (que não foi igual por toda a Europa, note-se; nem sequer foi sempre deísta ou "libertino", como se chamava a um pensador-livre - um "enciclopedista" - na altura: também houve Iluminismo Católico) essas criações serviriam de contraponto ideal, colocando em paralelo o barbarismo medievo com a justiça social e o progresso cultural dos novos tempos. Foram tão eficazes que ainda hoje a maioria do público acredita que foram reais.

Recomendo a visita a este tipo de exposições - umas mais fidedignas que outras, é certo -, porque são excelente entretenimento, mas no que diz respeito ao rigor e à veracidade histórica estão para estes como o antigo Comboio Fantasma da Feira Popular de Lisboa estaria.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Geração Única


O jornal Público está a publicar uma série de artigos que reflectem sobre problemáticas de confrontos geracionais com a contemporaneidade portuguesa: o primeiro artigo intitula-se GERAÇÃO 45-64: Vinte anos para gozar a vida de reformado; o segundo, adoptando o título de Criados para aquilo que não podem ou não querem ser, analisa a geração nascida entre 1965 e 1981. Eu nasci no dia 17 de Abril de 1976, por conseguinte - por comodidade discursiva - pertencerei à geração que o fotógrafo húngaro Robert Capa apelidou de Geração X, referindo-se à juventude do período pós-Segunda Grande Guerra: designação que, depois disso, passou a conhecer o significado que hoje lhe é atribuído.

Confesso que não me sinto parte de Geração X nenhuma - nem de outra, identificada com diferente letra ou número. Sinto-me, sim, parte de um grupo muito heterogéneo, formado, em principal, por indivíduos com idades iguais ou próximas da minha, mas esse sentimento de pertença predica por uma epidermia enorme, no sentido em que ele existe por generosidade de meia-dúzia de genéricas referências culturais que servem de aglutinador, porque, vistas bem as coisas, e perdoem-me o plebeísmo, ainda ando, passados tantos anos desde a minha adolescência, "às apalpadelas" no que diz respeito a pertenças de grupo: a verdade é que nunca me senti parte de grupo nenhum - e ainda hoje não sinto.

Dito isto, confessada a minha incapacidade de investir num exame mais profundo sobre como a problemática geracional me afecta, confesso em idêntica medida a minha perplexidade diante do discurso frequente e simplista segundo o qual a minha geração é mimada, privilegiada e outros "adas" que seria fastidioso elencar (poderia escolher apenas um: enganada, mas nestes apontamentos tenho vontade de ir por outra via). Eu sinto-me mais próximo de alguns indivíduos que pertencem a gerações diferentes da minha (tanto mais velhas como mais novas) e essa transversalidade permite-me observar o seguinte: ao contrário de classes, não existirão gerações privilegiadas. Talvez até nem sequer faça sentido o conceito de "geração", como neste tópico tem sido aplicado: o que se passa é que existem e continuarão a existir indivíduos, que nascem e vão morrer, e que terão, à maneira dos seus tempos, de encontrar estratégias, horizontes, e lutar contra os seus monstros. São os indivíduos, nas suas esferas privadas e nos seus espaços de intervenção pública, que - como terá dito o papa Clemente VII ao advento do saque de Roma organizado pelo imperador Carlos V - têm de olhar de frente o horror e indignar-se: «Meu Deus, deste-me vida para que pudesse ver isto?» Ou seja: acho que, no fundo, arrumar a sociedade em caixas convenientes chamadas "gerações" é mais divisivo do que outra coisa: afinal de contas, a sociedade é composta por mais do que uma geração - as gerações não se substituem umas às outras, como certas "raças mágicas" de alguns sistemas esotéricos oitocentistas: elas coexistem. Logo, partilham problemas e terão, também, de partilhar soluções.

A ideia que pretendo transmitir é que só existe uma "geração", formada por todos os indivíduos que estão vivos: uns a estudar, outros a trabalhar, outros desempregados, outros reformados, mas todos parte integrante e importante da sociedade portuguesa. Não existem "gerações": existimos nós.