terça-feira, 12 de agosto de 2014

Sobre instrumentos medievais e modernos de tortura


Neste momento, no Edifício da Alfândega do Porto, o público pode ver mais uma das exposições de ditos objectos e mecanismos medievais e modernos de tortura, usados, alegadamente, entre outros organismos, pelas inquisições. Exposições desta natureza são frequentes e eu já visitei muitas, em Portugal e no estrangeiro: todas muito parecidas - algumas até davam a ideia de apresentarem as mesmas colecções, com um punhado de peças diferentes, consoante os locais de mostra ao público. O problema destas exposições - que são um excelente entretenimento, para quem aprecia a temática tétrica (eu, sem dúvida, que aprecio) - é que fortalecem e divulgam continuamente ideias erradas sobre a história medieval e a história das inquisições. A verdade é que a maioria dos comuns instrumentos medievais e modernos de tortura que preenchem o imaginário popular, graças a este e outros tipos de veículos de entretenimento, NUNCA EXISTIRAM: são absolutamente FALSOS.

Nunca - NUNCA - existiu a Dama de Ferro, a Pêra de Tortura, a Cadeira Inquisitorial (que ilustra o anúncio da exposição) e tantos outros artifícios angustiantes. As inquisições nunca os usaram para extrair confissões. De facto, aquilo que o público pensa que sabe sobre tortura inquisitorial ESTÁ ERRADO. Sim, as inquisições torturavam indivíduos para extrair confissões - e detinham engenhosos estratagemas legais para que as sessões de tortura de um determinado indivíduo se pudessem repetir (isto, porque de acordo com os regimentos cada indivíduo só podia ser torturado uma vez) -, mas somente usaram dois métodos: a polé e o potro - métodos que não vertiam sangue, porque as inquisições estavam proibidas de verter sangue.

As torturas na polé e no potro estavam muitíssimo longe de ser arbitrárias: eram reguladas com rigidez por um conjunto intrincado de correspondências entre a solidez das suspeitas e a gravidade das acusações, sendo que a cada sessão de tortura era atribuído um grau em especial; por exemplo, um indivíduo podia ser sentenciado a uma tortura de grau três no potro, o que corresponderia, somente, a que tivesse as cordas amarradas no corpo sem que estas fossem apertadas. Na maioria das vezes, os acusados eram condenados a, simplesmente, olhar para os instrumentos de tortura - o que, quase sempre, resultava em confissões (verdadeiras ou inventadas). A tortura na polé era, de certa forma, mais violenta: quem não teria hipótese de aguentá-la (um médico avaliava sempre o estado de saúde dos acusados antes das sessões de tormento) era condenado a ser torturado em grau equivalente no potro. Não estou a branquear as inquisições: isto é a mais pura verdade histórica e todos estes factos podem ser comprovados. As torturas no potro e na polé eram terríveis, que isso fique retido, e os indivíduos podiam ficar estropiados para o resto da vida, mas a lenda negra do sadismo inquisitorial, tal como é veiculada pela indústria cinematográfica e por exposições como a que serve de mote a este artigo, é uma completa e desavergonhada ficção.

Os falsos instrumentos medievais e modernos de tortura foram inventados nos séculos XVIII e XIX por alguns antiquários e outros brincalhões, provavelmente com a intenção de titilar as audiências e lucrar com a sua exposição: em pleno decurso do Iluminismo (que não foi igual por toda a Europa, note-se; nem sequer foi sempre deísta ou "libertino", como se chamava a um pensador-livre - um "enciclopedista" - na altura: também houve Iluminismo Católico) essas criações serviriam de contraponto ideal, colocando em paralelo o barbarismo medievo com a justiça social e o progresso cultural dos novos tempos. Foram tão eficazes que ainda hoje a maioria do público acredita que foram reais.

Recomendo a visita a este tipo de exposições - umas mais fidedignas que outras, é certo -, porque são excelente entretenimento, mas no que diz respeito ao rigor e à veracidade histórica estão para estes como o antigo Comboio Fantasma da Feira Popular de Lisboa estaria.