quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A minha opinião sobre a série televisiva «Gotham»


Gotham, série televisiva desenvolvida por Bruno Heller e exibida pelo canal Fox, é um produto bastardo, imaginado para capitalizar o sucesso e o apetite criados pela trilogia cinematográfica realizada por Christopher Nolan.

Em essência, os episódios não passam de um híbrido desequilibrado do popular jogo Quem é Quem? e do registo tradicional de séries televisivas policiais, como Homicide: Life on the Streets. O resultado é dolorosamente anticlimático, porque Gotham é uma série do Batman sem Batman.

Pelo menos, a série de banda desenhada Gotham Central, escrita por Ed Brubaker, Greg Rucka e desenhada por Michael Lark, que possui um espírito análogo à Gotham que nos traz aqui à colação, transmite um sentimento interessantíssimo, que é o seguinte: ao concentrar-se na luta de um punhado de polícias comuns de Gotham City contra a coterie de espantosos inimigos de Batman (como o Joker, o Pinguin, o Enigma, o Mr. Freeze, etc.), lembra-nos o porquê do Batman ser, com efeito, necessário – é que para lutar contra indivíduos tão incomuns, tão extraordinários, é preciso ser-se, também, assim tão incomum ou ainda mais extraordinário. Nas páginas de Gotham Central, ao ver-se os rotineiros inimigos de Batman em oposição a polícias vulgares, homens comuns sem nenhumas competências especiais, é-se lembrado que esses vilões são, afinal de contas, extremamente perigosos e muitíssimo difíceis de capturar – mais ou menos à semelhança dos mercenários de elite ou dos terroristas de topo que, por vezes, marcam os espaços noticiosos da nossa comunicação social.

Em Gotham Central, Batman aparece somente pontualmente, quase sempre em segundo plano, o que oferece um “realismo”, diga-se deste modo, a essa série singular, assim como um contraponto de avaliação que nos permite perceber o quão longe os polícias comuns arriscam a vida (ficcionalmente falando). Seguindo em sinal oposto, Gotham, de Heller, é um desastre, não indo para além de um cansativo desporto de identificações e de uma refractária introdução de criminosos imaginados a martelo para, evidentemente, encher chouriços, episódio a episódio, enquanto um, ainda infante, Bruce Wayne, numa composição entre o fantasmático barão de uma velha linhagem quasi-extinta e o arquetípico miúdo mimado, não cresce o suficiente para, enfim, tornar-se Batman, de uma vez por todas. No que concerne a esta personagem, é questionável a tutelagem do, ainda infante, James Gordon, numa composição entre o Kevin Costner de Os Intocáveis e o Bruce Willis quando este ainda tinha cabelo, que, vá lá saber-se porquê, vai tomar sob a sua asa o traumatizado Bruce Wayne, saído de fresco do homicídio dos pais. Que raio está o mordomo Alfred ali a fazer? Dir-se-ia que Gordon é mais Alfred que o próprio Alfred – que, aparentemente, justifica a sua presença apenas pelo catering. Gotham transforma Bruce Wayne numa espécie de Rex, o Cão Polícia, no sentido em que é uma personagem que dá o título à série (ou, neste caso, justifica-o), mas que, de facto, aparece pouquíssimo -- e fá-lo sempre com um olho no actor que com ela contracena e outro no tratador posicionado com a guloseima atrás da câmara. Não há pachorra.

O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita: Gotham está para o universo de Batman, tal como a mercearia de bairro está para o hipermercado – e falo em mercearia e em hipermercado, porque, aqui, meus caros, não existe, sequer, a pretensão da arte (como nos filmes de Burton, de Nolan ou até da série campy dos anos sessenta, com Adam West). Gotham é comercialista até ao osso. Enquanto série televisiva, agradará, penso, a duas categorias: 1) fãs irredutíveis de Batman, que consomem TUDO aquilo em que ele aparece – e até aquilo em que NÃO aparece, como é o caso – e 2) espectadores comuns, nada familiarizados com o universo de Batman, que gostam de séries policiais a puxar um bocadinho (mas só um bocadinho) para o esquisito (para aqueles que gostam de séries policiais a puxar muitíssimo para o esquisito existe a série televisiva Hannibal, desenvolvida por Bryan Fuller para o canal NBC, mas isso seriam outros quinhentos). Todos os outros que, como eu, ficam no meio – aqueles que gostam de Batman, mas que não gostam assim tanto que sejam capazes de engolir com gosto este pastel de bacalhau, feito com todos os peixes, excepto o bacalhau – dificilmente encontrarão motivos de interesse em Gotham. Desliguem a televisão e vão ler as boas bandas desenhadas de Batman, que ainda são uma boa meia-dúzia. É que também existem centenas de más bandas desenhadas do Batman, mas, enfim, como em tudo, uma personagem ou um determinado universo ficcional devem ser avaliados pelo que de melhor têm para mostrar e não pelo contrário.