sexta-feira, 26 de junho de 2015

Serradura e Barro: ou, Os Materiais e as Ideias


É tentador colacionar os polímates oitocentistas William Morris e Rafael Bordalo Pinheiro: nascidos no eixo do século XIX, num momento em que os remanescentes resquícios do Antigo Regime estavam a ser soprados para o passado por novos ventos - malquistos para uns, benfazejos para outros -, ambos observavam com desconfiança e desânimo a emergência da industrialização e a conjuntura capitalista em crescimento, ambos dedicaram os últimos anos de vida a produzir arte para as massas e, claro!, ambos adoravam gatos - o design delicado do lápis de Morris e a contundente caricatura criada pelo buril de Bordalo encontram um pouco esperável equilíbrio híbrido num discreto desenho feito a carvão por Morris, que mostra um gato sonolento, diante de uma toca de rato aberta num rodapé: o perfil felídeo fascina-nos com um feitio horaciano de risum teneatis que, em regra, está ausente na restante obra morrisiana, mas que consiste na mot d'ordre de Bordalo.

Não obstante, Morris rejeitou o método de produção em massa a que o desenvolvimento industrial deu o ensejo, preferindo manufacturar peças decorativas e de mobiliário segundo métodos antigos, em esquadria com desenhos e materiais tradicionais. Por sua escala, Bordalo adoptou à medida do seu projecto de neocerâmica caldense as fórmulas fabris, subordinando-as, para o efeito, à estética e discurso artesanais, mostrando que o ritmo de repetição e montagem que viria a assinalar, ainda no seu tempo, o arranque veloz do chamado taylorismo - epíteto que, mais tarde, Gramsci transmutaria em fordismo - não significava, em regra, a dissolução da identidade, subjacente aos artigos de consumo desenhados de modo "autoral" - no fundo, descobria-se que arte e design são, bem vistas as coisas, palavras com significados diferentes. Assim, tanto Morris, como Bordalo foram, em simultâneo, artistas e designers: ou seja, estetas por mérito próprio e, ainda, criadores conformes ao imperativo industrial; ambos sequestraram a doxa do domínio da produção em massa para os paraísos feéricos das suas imaginações. O projecto de Bordalo, contudo, intersecciona-se em maior envergadura com o de Christopher Dresser, outro contemporâneo. Um dos designers industriais mais influentes, tanto na Europa, como, depois, no Japão, Dresser deslumbrara-se, com dezassete anos de idade, no ventre do Crystal Palace, qual Jonas dentro do estômago da baleia, com a rutilância da grande exposição industrial de 1851 e essa experiência sensacional alentou-o a criar peças artísticas para a classe média, concebendo objectos de funcionalismo análogo aos de Morris e Bordalo (bibelôs, baixelas, papéis de parede, mesas e cadeiras, etc.), pese a enorme diferença estética: onde Morris é pastoril e Bordalo é popular, Dresser é quase pós-funcionalista, em sentido contrário, portanto, ao gosto neo-rococó que marcou os últimos lustres de oitocentos.

Avançando para o gonzo oleado a sangue e petróleo do século XX, foi, também, na encruzilhada entre o maquinal e o manual que uma descoberta baseada nos resíduos da marcenaria e da olaria viria a beneficiar os bichanos de todo o mundo - algo que, sem dúvida, faria a felicidade de Morris e Bordalo, eles que foram, às suas maneiras, marceneiro e ceramista.
Em Janeiro de 1948, na vila de Cassopolis, no estado norte-americano do Michigan, a dona de casa Kay Draper descobriu que a temperatura hibernal do início do ano inutilizara a areia usada para a caixinha do seu gato; nesse momento, percebeu que tinha de encontrar uma substância alternativa. Dessa sorte, experimentou serradura, adquirida numa estância da vizinhança, mas não ficou satisfeita com o resultado. Em seguida, o filho do dono da estância, Edward Lowe, com vinte sete anos de idade, persuadiu Draper a experimentar outro material, que ele tinha em abundância: uma espécie de fragmentos secos de barro, chamado Terra de Fuller, que estava a ser paulatinamente aplicado como sendo um absorvente industrial que substituía com segurança a serradura (a serradura é inflamável e o seu armazenamento nas fábricas era arriscado); Lowe tentara, sem êxito, vender Terra de Fuller a criadores de galinhas, como material ignífugo de nidificação - foi, consequentemente, por culpa do stock encalhado resultante desse fracasso que a senhora Draper pôde levar uma amostra para testar em casa, na caixinha do gato. A conclusão, adivinha-se, é histórica: nos primeiros dez sacos de Terra de Fuller que embalou para ir bater às portas das lojas de artigos para animais, Lowe escreveu com um lápis de cera o nome improvisado de Kitty Litter.

A invenção do Kitty Litter operou uma revolução no modo como os indivíduos se relacionavam com os gatos: até à data, pouquíssimos lares possuíam as chamadas caixinhas de areia e era comum os gatos fazerem as necessidades no exterior - o gato era, por esse motivo, uma criatura semi-selvagem, que ainda passava muito tempo fora de casa. Nos meses de Inverno, algumas famílias usavam tabuleiros ou caixas com terra retirada da rua ou areia para que os gatos não tivessem de sair com chuva e neve. Disseminado o uso do Kitty Litter, foi possível manter os gatos dentro de casa por períodos mais longos, contribuindo para a sua, cada vez maior, longevidade - e popularidade enquanto animal de estimação.
A respeito dessa popularidade, os cientistas começaram a estudar os gatos com mais atenção, compreendendo como, de facto, estes se comportavam e descobrindo aquilo que mais necessitavam para ser felizes. Nessa sequência, ocorreu outra revolução que contribuiu fulgurantemente para esse desiderato: a invenção da comida industrial exclusivamente desenvolvida para gatos, a partir da década de 70 do século passado. Descobrindo que os gatos precisavam de uma dieta diferente da dos cães e, sobretudo, de componentes vitamínicos e minerais específicos, muito difíceis de administrar em regimes feitos de comida confeccionada propositadamente em casa ou de restos de qualidade nem sempre ideal (que eram, até à data, os mais frequentes), a metodologia industrial de produção vilipendiada por Morris, tolerada por Bordalo e abraçada por Dresser estabeleceu o início do melhor tempo que os seus adorados gatos estão a viver. Foi, pois, a fortuita invenção artesanal/industrial do Kitty Litter, improvisado com resíduos de origem cerâmica, que possibilitou esse progresso - hoje, melhorado com a descoberta da bentonite, uma qualidade ainda mais absorvente de barro, que se aglomera compactamente em contacto com líquidos.

No cruzamento da serradura e do barro, da marcenaria de Morris e da cerâmica de Bordalo, co-tangente ao interstício do artesanal com o industrial, a alquímica amálgama do engenho e do tempo precisa, sempre, de materiais e de ideias. Quando se vive num tempo em que há ideias, mas faltam materiais, tudo parece estagnado, mas pior é viver num tempo em que até existem alguns materiais, mas faltam ideias. Quando há ideias, do pouco se faz muito; por outro lado, quando não há ideias, pode ter-se cofres cheios, que isso não levará a lado nenhum.