sábado, 27 de junho de 2015

Sobre a queima do gato em Mourão

 
Os mouranenses que com exultação participaram na sua tradicional queima do gato, no decurso de uns divertimentos regionais em celebração do feriado de São João, não serão, certamente, facínoras sanguinários e muito menos psicopatas: encontram-se é empapados numa mundividência primitiva, muitíssimo liminar entre os códigos da bruxaria e da religiosidade mais sincréticas e desregradas, segundo a qual um gato não é um ser vivo consciente, com uma vida mental sofisticada, mas, somente, um autómato movido por instinto; tal como, até há poucos anos, se consideravam as crianças e as mulheres.

Folguedos brutais, de natureza idêntica ou análoga à deste, foram – e ainda são – comuns em toda a Europa: o jogo cruel de atiçar animais domésticos e selvagens uns contra os outros nas praças das vilas; de pô-los a lutar com homens armados ou desarmados em picadeiros improvisados; ou, simplesmente, a tortura espectacular, encenada em contextos de catarse social, deliciaram os nossos antepassados, rurais e cosmopolitas – satisfações das quais não esteve ausente uma forma diferente de estabelecer a fronteira que aparta o humano do não-humano. Com efeito, aquilo que é considerado não-humano pode ser tratado desumanamente; seja um animal ou uma pessoa (como os trágicos genocídios do século passado vieram, cabalmente, demonstrar). No final do século XVIII, o filósofo inglês Jeremy Bentham lançou o argumento seminal sobre o qual foi edificado o movimento oitocentista de promoção dos direitos dos animais, que sustentou no seu seio elementos tão díspares e com ideologias tão contraditórias quanto humanitaristas, utilitaristas e vegetarianos; além das disparidades de objectivos nutridos por cada grupo, deles nos chegou a noção de que os animais, afinal de contas, não são coisas. Na verdade, o ser humano, criatura muito recente do ponto de vista evolutivo, partilha o mesmo tipo de sistema nervoso que a maioria das existentes espécies animais.

Hoje, sabe-se que entre gato e homem existem supinas similitudes neurológicas, ao nível daquelas que estreitam a distância entre nós e alguns dos grandes símios, tanto na geografia cerebral, como no modo como o córtex, a camada superior do cérebro, se encontra desenvolvido. Os gatos são criaturas sensíveis e imaginativas: sonham muito e criam laços afectivos fortíssimos. No entanto, os ailurófobos (ailurofobia é o nome da fobia ou do terror a gatos, com base em aielouros, o nome grego para gato e que significa cauda abanicante) sempre foram mais militantes que os ailurófilos: queimar gatos vivos nas praças de vilas e cidades foi, até recentemente, um divertimento de massas, no qual participava toda a gente. Os detalhes mudam, de acordo com as localidades, mas tudo se resumia à acção de deitar directamente gatos vivos, fechados em sacos ou cestos, para uma grande fogueira (como o rei Luís XIV, de França, preferia) ou, então, na criação de situações em que eles caíssem sozinhos em cima dela (como no caso da queima do gato da localidade transmontana de Mourão). Acrescente-se que massacrar gatos à cacetada foi um passatempo de luxo para animar a corte portuguesa nos intervalos das longas touradas que, outrora, duravam horas a fio. Todas estas práticas, que consideramos bárbaras, tinham em comum a ideia de que era aceitável lidar de modo desumano com o não-humano.

A sociedade ocidental – é preciso, de facto, sublinhar que ela tem sido pioneira neste aspecto (e noutros também importantes) – tem vindo, num ritmo lento, mas seguro, a incluir um número cada vez maior de não-humanos na esfera de direitos que até há pouco tempo protegia, em exclusivo, alguns humanos, aleitando uma cultura de respeito e de valorização de vidas, criminalizando práticas consideradas naturais há uma ou duas gerações (como neste atávico caso mouranense, que desrespeita a legislação sobre maus-tratos a animais domésticos que entrou em vigor a 1 de Outubro de 2014). Haverá sempre indivíduos para quem a violência e o sadismo serão aceitáveis, mas, globalmente, aquilo que empurra as massas (e as elites) para o entretenimento atroz é a prosaica ignorância. Permanecer ofuscado pelo falso entendimento de que os animais são pouco mais do que objectos (em paralelo, já se acreditou, até, que as mulheres não tinham almas, por exemplo), concepção ainda fortalecida pela crença de que os todos os frutos da terra, diga-se assim, são dados por Deus ao homem para que ele disponha deles do modo que achar mais conveniente, é um puro exercício de anacronismo que não tem mais lugar numa sociedade esclarecida. No meu ponto de vista, o somatório é claro: entretenimentos que tenham como móbil a tortura directa ou outro carácter caviloso de sofrimentos físicos e psicológicos de animais e pessoas são crimes inaceitáveis. Assim, sujeitar um gato à clausura num pote de barro e a uma queda potencialmente fatal provocada por um ardil incendiário é um crime inaceitável.

Em 2001, um grupo de arqueólogos do Museu de História Natural de Paris encontrou na aldeia neolítica de Shillourokambos, na ilha de Chipre, um túmulo datado de 7500 a. C.: lá dentro, descobriram as ossadas intactas de um esqueleto humano, acompanhadas pelas ossadas intactas de um esqueleto de um gato. (Este, não deveria ter, ainda, um ano de idade quando foi enterrado.) Avaliando o espólio que rodeia o esqueleto humano pode especular-se com propriedade que seria um chefe ou, no mínimo, um indivíduo muitíssimo importante: nesse feitio, quando morreu, foi enterrado com o seu gato. É, na verdade, a mais antiga inumação conhecida de um humano com o seu gato de estimação. Obviamente, os serventes mataram o gato para enterrá-lo com o amo, mas, ainda assim, o que esse acto revela é a ideia de que aquele dono seria mais feliz no além-túmulo se tivesse a companhia do seu animal – e que este, presume-se, também seria mais feliz se fosse acompanhar o dono, em vez de ficar sozinho. Nas fímbrias pré-históricas da antecâmara do nosso mundo vê-se aqui o nascimento da consciência de que, mais do que ser uma mascote, aquele gato era parte da família. E, em suma, é desse modo que a maioria dos donos actuais vêem os seus gatos: como sendo parte das suas famílias. Fará sentido de outra maneira?
Se nos tempos arredados do Neolítico já havia quem se comportava assim, é provável que haja esperança para os infelizes campónios contemporâneos de Mourão, no sentido de progredirem a sua visão das coisas e perceber que é mais enriquecedor brincar com um gato do que queimá-lo.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Serradura e Barro: ou, Os Materiais e as Ideias


É tentador colacionar os polímates oitocentistas William Morris e Rafael Bordalo Pinheiro: nascidos no eixo do século XIX, num momento em que os remanescentes resquícios do Antigo Regime estavam a ser soprados para o passado por novos ventos - malquistos para uns, benfazejos para outros -, ambos observavam com desconfiança e desânimo a emergência da industrialização e a conjuntura capitalista em crescimento, ambos dedicaram os últimos anos de vida a produzir arte para as massas e, claro!, ambos adoravam gatos - o design delicado do lápis de Morris e a contundente caricatura criada pelo buril de Bordalo encontram um pouco esperável equilíbrio híbrido num discreto desenho feito a carvão por Morris, que mostra um gato sonolento, diante de uma toca de rato aberta num rodapé: o perfil felídeo fascina-nos com um feitio horaciano de risum teneatis que, em regra, está ausente na restante obra morrisiana, mas que consiste na mot d'ordre de Bordalo.

Não obstante, Morris rejeitou o método de produção em massa a que o desenvolvimento industrial deu o ensejo, preferindo manufacturar peças decorativas e de mobiliário segundo métodos antigos, em esquadria com desenhos e materiais tradicionais. Por sua escala, Bordalo adoptou à medida do seu projecto de neocerâmica caldense as fórmulas fabris, subordinando-as, para o efeito, à estética e discurso artesanais, mostrando que o ritmo de repetição e montagem que viria a assinalar, ainda no seu tempo, o arranque veloz do chamado taylorismo - epíteto que, mais tarde, Gramsci transmutaria em fordismo - não significava, em regra, a dissolução da identidade, subjacente aos artigos de consumo desenhados de modo "autoral" - no fundo, descobria-se que arte e design são, bem vistas as coisas, palavras com significados diferentes. Assim, tanto Morris, como Bordalo foram, em simultâneo, artistas e designers: ou seja, estetas por mérito próprio e, ainda, criadores conformes ao imperativo industrial; ambos sequestraram a doxa do domínio da produção em massa para os paraísos feéricos das suas imaginações. O projecto de Bordalo, contudo, intersecciona-se em maior envergadura com o de Christopher Dresser, outro contemporâneo. Um dos designers industriais mais influentes, tanto na Europa, como, depois, no Japão, Dresser deslumbrara-se, com dezassete anos de idade, no ventre do Crystal Palace, qual Jonas dentro do estômago da baleia, com a rutilância da grande exposição industrial de 1851 e essa experiência sensacional alentou-o a criar peças artísticas para a classe média, concebendo objectos de funcionalismo análogo aos de Morris e Bordalo (bibelôs, baixelas, papéis de parede, mesas e cadeiras, etc.), pese a enorme diferença estética: onde Morris é pastoril e Bordalo é popular, Dresser é quase pós-funcionalista, em sentido contrário, portanto, ao gosto neo-rococó que marcou os últimos lustres de oitocentos.

Avançando para o gonzo oleado a sangue e petróleo do século XX, foi, também, na encruzilhada entre o maquinal e o manual que uma descoberta baseada nos resíduos da marcenaria e da olaria viria a beneficiar os bichanos de todo o mundo - algo que, sem dúvida, faria a felicidade de Morris e Bordalo, eles que foram, às suas maneiras, marceneiro e ceramista.
Em Janeiro de 1948, na vila de Cassopolis, no estado norte-americano do Michigan, a dona de casa Kay Draper descobriu que a temperatura hibernal do início do ano inutilizara a areia usada para a caixinha do seu gato; nesse momento, percebeu que tinha de encontrar uma substância alternativa. Dessa sorte, experimentou serradura, adquirida numa estância da vizinhança, mas não ficou satisfeita com o resultado. Em seguida, o filho do dono da estância, Edward Lowe, com vinte sete anos de idade, persuadiu Draper a experimentar outro material, que ele tinha em abundância: uma espécie de fragmentos secos de barro, chamado Terra de Fuller, que estava a ser paulatinamente aplicado como sendo um absorvente industrial que substituía com segurança a serradura (a serradura é inflamável e o seu armazenamento nas fábricas era arriscado); Lowe tentara, sem êxito, vender Terra de Fuller a criadores de galinhas, como material ignífugo de nidificação - foi, consequentemente, por culpa do stock encalhado resultante desse fracasso que a senhora Draper pôde levar uma amostra para testar em casa, na caixinha do gato. A conclusão, adivinha-se, é histórica: nos primeiros dez sacos de Terra de Fuller que embalou para ir bater às portas das lojas de artigos para animais, Lowe escreveu com um lápis de cera o nome improvisado de Kitty Litter.

A invenção do Kitty Litter operou uma revolução no modo como os indivíduos se relacionavam com os gatos: até à data, pouquíssimos lares possuíam as chamadas caixinhas de areia e era comum os gatos fazerem as necessidades no exterior - o gato era, por esse motivo, uma criatura semi-selvagem, que ainda passava muito tempo fora de casa. Nos meses de Inverno, algumas famílias usavam tabuleiros ou caixas com terra retirada da rua ou areia para que os gatos não tivessem de sair com chuva e neve. Disseminado o uso do Kitty Litter, foi possível manter os gatos dentro de casa por períodos mais longos, contribuindo para a sua, cada vez maior, longevidade - e popularidade enquanto animal de estimação.
A respeito dessa popularidade, os cientistas começaram a estudar os gatos com mais atenção, compreendendo como, de facto, estes se comportavam e descobrindo aquilo que mais necessitavam para ser felizes. Nessa sequência, ocorreu outra revolução que contribuiu fulgurantemente para esse desiderato: a invenção da comida industrial exclusivamente desenvolvida para gatos, a partir da década de 70 do século passado. Descobrindo que os gatos precisavam de uma dieta diferente da dos cães e, sobretudo, de componentes vitamínicos e minerais específicos, muito difíceis de administrar em regimes feitos de comida confeccionada propositadamente em casa ou de restos de qualidade nem sempre ideal (que eram, até à data, os mais frequentes), a metodologia industrial de produção vilipendiada por Morris, tolerada por Bordalo e abraçada por Dresser estabeleceu o início do melhor tempo que os seus adorados gatos estão a viver. Foi, pois, a fortuita invenção artesanal/industrial do Kitty Litter, improvisado com resíduos de origem cerâmica, que possibilitou esse progresso - hoje, melhorado com a descoberta da bentonite, uma qualidade ainda mais absorvente de barro, que se aglomera compactamente em contacto com líquidos.

No cruzamento da serradura e do barro, da marcenaria de Morris e da cerâmica de Bordalo, co-tangente ao interstício do artesanal com o industrial, a alquímica amálgama do engenho e do tempo precisa, sempre, de materiais e de ideias. Quando se vive num tempo em que há ideias, mas faltam materiais, tudo parece estagnado, mas pior é viver num tempo em que até existem alguns materiais, mas faltam ideias. Quando há ideias, do pouco se faz muito; por outro lado, quando não há ideias, pode ter-se cofres cheios, que isso não levará a lado nenhum.

domingo, 14 de junho de 2015

"Gentleman" de André Oliveira e Ricardo Reis


Gentleman de André Oliveira e Ricardo Reis (Ave Rara, 2015), é revigorantemente bom: adorei! Uma série a acompanhar com toda a atenção: delirante e pertinente.

Podem encontrar Gentleman nas livrarias especializadas em BD (Kingpin Books, El Pep, por exemplo) ou encomendar directamente pelo email: andrealexandreoliveira@gmail.com

Vejam algumas pranchas de Gentleman nesta ligação.


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Nomeações para Troféus Central Comics 2015


O meu livro de BD Sepulturas dos Pais, escrito por mim e desenhado por André Coelho, e a minha BD curta O Homem-Javali Vai Casar; ou Leng Tch'e, escrita por mim e desenhada por Pedro Serpa (publicada na antologia Crumbs) estão nomeados para três troféus de BD Central Comics: respectivamente, Melhor Argumento e Melhor Desenho ("Sepulturas dos Pais") e Melhor História Curta (O Homem-Javali Vai Casar; ou Leng Tch'e). Os Troféus Central Comics são prémios votados pelos leitores. Sepulturas dos Pais e Crumbs, ambas de 2014, são edições Kingpin Books.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Autógrafos na 85ª Feira do Livro de Lisboa


Informo que no sábado dia 13 de Junho, das 16H00 às 18H00, estarei na 85ª Feira do Livro de Lisboa: encontrar-me-ão junto do stand da Europress, distribuidora da Kingpin Books (stand B11, conforme poderão ver no mapa publicado abaixo). Comigo também estarão os autores de BD André Oliveira e André Pereira.