sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sobre a sobrevivência da Calçada Portuguesa em Lisboa



Extrair a chamada Calçada Portuguesa dos pavimentos públicos pedonais de Lisboa com base no argumento de que é legítimo fazê-lo porque ela não é tão antiga quanto se pensa, como se apregoa nos meios de comunicação, é, com efeito, errado, já que uma maior distância temporal que separe um determinado objecto histórico deste momento presente não confere nenhuma especial autoridade a esse objecto em relação a outros que sejam de lavra mais recente: sobretudo no que concerne à transformação do espaço urbano, ao longo das eras, pelos indivíduos que o foram habitando – tudo é histórico.

Por conseguinte, numa perspectiva histórica, a oitocentista calçada portuguesa, composta por mosaicos decorativos feitos de pedras calcárias pretas e brancas, é tão importante quanto o quinhentista Mosteiro dos Jerónimos: monumento cujo recorte inconfundível para todos os observadores locais e todos os visitantes estrangeiros deve, hoje, muito mais a profundos restauros oitocentistas do que ao seu desenho original – assim como a acarinhadíssima Torre de Belém, ainda mais totalmente reincorporada de elementos decorativos e estruturais oitocentistas que, para a maioria dos lisboetas e demais portugueses, são ainda vistos como sendo iniciais. Nestes casos, em que pouquíssimo resta de original – leia-se quinhentista – nas suas composições, também será legítimo removê-los – o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém – por consistirem em recriações recentes (e absolutamente contemporâneas dos primeiros assentamentos lisboetas de Calçada Portuguesa)?

Justificações de remoção de um objecto histórico baseadas na suposta autoridade ou não-autoridade concedidas pela calandragem do tempo são espúrias. Suspeito que o facto de, cada vez mais, existirem pouquíssimos calceteiros qualificados para fazer a conservação de um objecto tão ornamental e difícil de burilar como a Calçada Portuguesa torne muito caro o seu emprego; assim, imagino que cada vez que se rompa um rego na Calçada Portuguesa para remendar um cano, ou cada vez que tenha de desfazer-se o puzzle da Calçada Portuguesa para obras de natureza diversa, seja mais utilitário (vulgo, barato) substitui-la por prosaicos pavimentos lisos, de cimento branco.

Soluções rápidas e simples deste jaez quase nunca se relacionam com motivos mais nobres que o elementar economicismo: é este – e não outro – que subjaz à sanha sarcótica de querer remover a Calçada Portuguesa das ruas de Lisboa. Nesta óptica, o tal argumento de que não faz mal que a Calçada Portuguesa desapareça, porque ela não é assim tão antiga quanto isso ainda poderá servir para derrubar o Mosteiro dos Jerónimos ou a Torre de Belém quando os corifeus do economicismo aprenderem um pouco de história e ganharem a noção de que esses monumentos também são reconstruções oitocentistas, coevas das primeiras pavimentações de Calçada Portuguesa em Lisboa.

Onde se traça, afinal de contas, a linha temporal aceitável para que um objecto histórico tenha licença para continuar a existir? Aparentemente, nem objectos mais antigos escapam à cupidez e à estupidez: basta lembrar que a escadaria seiscentista do ducentista Mosteiro de Alcobaça foi quase totalmente coberta de cimento quando, há uns anos, se produziu a nova praça que lhe é dianteira.

A beleza da Calçada Portuguesa revela-se com deslumbrância quando é contemplada de cima, mas aí reside outro grande obstáculo à sua sobrevivência no período que, infelizmente, atravessamos: é que gente menor é incapaz de olhar seja o que for de um ponto de vista elevado.