quinta-feira, 16 de junho de 2016

Sobre bruxas – e sobre o primeiro caçador de bruxas lisboeta


Em relação à publicação anterior, publico umas breves notas sobre o fenómeno da feitiçaria – e uma curiosidade sobre o primeiro caçador de bruxas lisboeta. Ora, escrever sobre satanismo e feitiçaria é escrever sobre uma tradição heterogénea de contracultura ocidental, apreendendo que a cultura dominante face à qual ambas manifestações se unem em antagonismo é a cristã, quaisquer que sejam as denominações.

Do ponto de vista teológico, o satanismo é uma religião que professa ódio ao cristianismo e no qual se idolatra uma mónade construída a partir de alusões sobre o Diabo que se encontram nos evangelhos do Novo Testamento. Não existe Diabo nos livros do Velho Testamento: existe, apenas, Jeová, capaz de fazer o Bem e o Mal – mesmo quando escolhe aleatoriamente um anjo para ser agente do Mal. Em oposição, o agente malquisto que surge nos evangelhos do Novo Testamento parece possuir traços de personagem independente; um Príncipe das Trevas em potência, ainda ambíguo e muitíssimo indistinto. O Novo Testamento é pródigo em contos de possessões demoníacas, testemunhos da existência de demónios e relatos sobre como Cristo ganhava a vida como exorcista, agarrando vigorosamente os endemoninhados para lhes cuspir para a boca e para os ouvidos de maneira a escorraçar os entes diabrinos. O satanismo estandardizado é uma invenção moderna, cujas primeiras representações datam do século XVII, desde as ditas missas negras de Catherine La Voisin (sentenciada pelo fogo em 1680), inventadas para entreter os enfadados nobres da corte de Versailles.

Nunca existiu um culto europeu organizado em volta de práticas de feitiçaria ou idolatração do Diabo, como acreditaram os inquisidores dominicanos quatrocentistas Jacob Sprenger e Heinrich Kramer. O mesmo erro foi pugnado pela académica inglesa Margaret Murray, cujas teses se encontram desacreditadas. Existem porosidades entre a feitiçaria e o satanismo; e a oposição do Diabo a Cristo (e a Deus) projecta-se na dos feiticeiros ao clero. A feitiçaria é, em essência, o controlo de forças sobrenaturais para maléficos fins anti-sociais; na maioria das vezes por intermédio de demónios e até do próprio Diabo. O mundo da feitiçaria maleficente não é o mesmo da magia tout court e encontra-se correlacionado directamente com o mundo cristão; tanto que a feitiçaria foi considerada, a princípio, uma heresia e é aqui que reside a chave da sua interpretação como contracultura, porque a heresia é sempre um desvio da ortodoxia: nesse sentido, Roma julgou que as feiticeiras conspiravam para criar uma nova fé presidida pelo Diabo e que a feitiçaria seria uma ferramenta para a sua edificação, enquanto elo cultural aglutinador dessa comunidade de hereges. Esta noção antagónica persistiu até ao século XVIII: o nosso filólogo Rafael Bluteau, por exemplo, ainda escreveu que «os que negam a magia caminham para o ateísmo. Por não confessarem que há demónios dizem que não há magos; e para porem em dúvida a existência de Deus negam tudo o que se atribui ao poder do demónio».

Pensa-se que algumas feiticeiras se empeçonhavam com substâncias alucinatórias, de modo a experimentarem sensações extracorporais de voo: esses narcóticos não eram fumados, mas tomados por via tópica pelas mucosas; em especial, as genitais – e aí com a colaboração de godemichés de madeira, o que contribuiu para a criação da lenda das feiticeiras montarem vassouras.

O primeiro caçador de bruxas oficial de Lisboa, vera magistratura criada a 3 de Novembro de 1385, por carta régia de D. João I, muito antes de iniciar-se pela Europa a infame febre purgatória antifeitiçaria, o que é extremamente curioso, foi o juiz executor Gonçalo Lourenço – sendo que aqui o adjectivo executor (ou eyxecutor, como também aparecia grafado na época) não tem o significado de carrasco, mas de aquele que opera, que «põe por obra alguma coisa». Esta magistratura continuou, evidentemente, e os reis posteriores trataram do assunto com a maior diligência, como se pode ler deste extracto das Ordenações Manuelinas:


«(…) qualquer pessoa, que em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada, invocar espíritos diabólicos, ou der a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a elle, morra por isso morte natural. Porem em estes dous casos, primeiro que se faça execução, nolo farão saber, para vermos a qualidade da pessoa, e modo em que se taes cousas fizeram (…)».
 
Enquanto a igreja cristã foi dominante, os imaginários do satanismo e da feitiçaria permearam de um modo palpável a psique pública, mas, para o padrão que afecta a este artigo, a preponderância desses modelos surgiu sincreticamente. Os tipos de satanismo e de feitiçaria que, a partir dos anos cinquenta do século passado, fizeram-se pesar na indústria artística e na de entretenimento já se mostravam como sendo misturas kitsch de desusadas crenças (volvidas inofensivas pela distância temporal e pela perda de relevância do cristianismo) com coordenadas oriundas do estranhíssimo mundo do esoterismo ocidental, consubstanciado a partir de meados do século XIX. Nomes como os do mago inglês Aleister Crowley (que não foi satanista, mas agnóstico) e do escritor inglês Dennis Wheatley (que inovou nos seus livros o estilo que definiria o das influentes produções cinematográficas de horror dos estúdios britânicos Hammer) são dos mais predominantes nesse caldo popular de referências em que o ingrediente principal é a imagem dramática do Diabo enquanto anti-herói, patrono dos marginais, dos boémios e dos livres-pensadores, cunhada por John Milton no livro Paradise Lost, obra inauguradora de, no mínimo, dois conceitos revolucionários: criou o adjectivo satânico e vinculou pela primeira vez o nome Lúcifer à personagem do Diabo – nome que, até à data, era apenas um dos dois epítetos do planeta Vénus, que aparece duas vezes por dia no céu (Lúcifer era o nome matutino e Vésper era o nome vespertino). Este inicial Lúcifer miltoniano é, por conseguinte, o vero protótipo do Diabo novecentista; transcolado, entre outros, pelos escritores franceses Charles Baudelaire, Joris-Karl Huysmans e Jules Michelet, mas também pelos russos Mikhail Lermontov e Fiódor Dostoiévski e pelo irlandês Charles Maturin.

Imagem: bruxa montada numa vassoura em Le champion des dames, de Martin Le France (1451).